sexta-feira, 29 de junho de 2012

Receita de lasanha



LASANHA DE CARNE
Tempo de preparação: 1h 15 m
Serve: 4- 6 pessoas;

  • 2 colheres de sopa de azeite;
  • 25 + 75 gr de manteiga;
  • 75 gr de farinha;
  • 2 cebolas;
  • 1 folha de louro;
  • 100 ml de polpa de tomate

  • 100 ml de vinho tinto;
  • 100 ml de caldo de carne;
  • 100+ 500 ml de leite;
  • 1 talo de aipo;
  • 1 cenoura;
  • uma mão cheia de salsa;
  • 2 dentes de alho;
  • 600 gr de carne de vaca magra;
  • 300 gr de queijo mozzarela;
  • queijo parmesão, q.b.;
  • placas de massa para lasanha ( frescas, de preferência)

    • sal, pimenta e noz moscada;


    Modo de preparação:
    1. Pique finamente uma cebola, os dentes de alho, o aipo e a cenoura.
    2. Entretanto aqueça duas colheres de sopa de  azeite e 50 gr de manteiga em lume médio/forte e adicione a folha de louro, o aipo, o alho, a cenoura e a cebola e deixe cozinhar mexendo frequentemente, durante cerca de 5 minutos. Adicione a carne mexendo com um garfo para desfazer a carne e deixe cozinhar até a carne ganhar cor. Reduza o lume para médio e junte a polpa de tomate, mexendo sempre. Junte o vinho e o caldo de carne e baixe para lume brando. Deixe fervilhar meio tapado e vá juntando o leite ao poucos. Deixe cozinhar até engrossar, cerca de 45 minutos. Rectifique os temperos.
    3. Pré-aqueça o forno a 200 Cº. Entretanto, derreta 75 gr de manteiga em lume brando. Adicione a farinha e mexa até formar uma pasta. Cozinhe mexendo sempre, cerca de 2 minutos. Retire do lume e adicione os 700 ml de leite aos poucos até obter um molho cremoso. Leve a lume brando novamente, adicionando uma pitada de noz-moscada, uma folha de louro e uma cebola inteira, deixando borbulhar por alguns minutos. Reserve.
    4. Num prato de forno distribua duas ou três placas de massa de lasanha, conforme a capacidade do prato, cubra com carne picada, seguida de três ou quatro fatias de queijo mozzarella, queijo parmesão ralado, a gosto, e de molho branco. Vá alternando estas camadas até terminar. Cubra com molho branco e queijo.  Leve ao forno por cerca de 30 minutos ou até estar dourado. Sirva.



    Gentilmente cedida por Filipa Meira

    Capítulo VII

    Deitada de costas sobre a coberta clara, alinhada, já esticada, ia ouvindo a animação que reinava no andar de baixo. Bancos pesados eram arrastados sem pudor, vozes jovens, alegres, frescas, melodiosas, conversavam num clima de grande familiaridade. Alguém punha a mesa, fazendo chocar os pratos uns nos outros, atirando os talheres com desenvoltura que batiam nos pratos, tilintando os copos, num chinfrim caseiro e apetecível. Na sua casa branca, limpa, imaculada, decorada cirurgicamente, nunca fazia barulho. Evitava o bater das chaves quando chegava das aulas para não perturbar o sossego da mãe, as atividades da mãe, as enxaquecas da mãe. O som da televisão estava sempre no mínimo, para não incomodar o pai, os telefonemas do pai, o trabalho do pai, o cansaço do pai. Virou-se, colocando-se de lado, a cabeça pousada na almofada rígida, enquanto uma lagrimazinha escorreu pelo seu olho, molhando a cana o nariz, precipitando-se na sua ponta arrebitada. “Esquece que tens uma filha.” Tinha disparado à mãe, à mãe que a gerara e a criara, à mãe que a olhava, de cabelos em desalinho e olhos muito abertos, subitamente despertos, subitamente vivos, no momento em que saia pela porta do apartamento. “Deixa-me em paz, vou viver a minha vida.” Sussurrou ao pai, à porta daquele restaurante badalado para onde o seguira, enquanto sentia os ombros nus da sua jovem acompanhante, virados na sua direção, enquanto sentia o seu olhar pintado e imberbe, pousado nos seus gestos, na sua roupa. Sentia o seu desdém, a sua vontade de se libertar dela, o seu rosto deformado, preso entre madeixas oxigenadas, prenuncio da sua sensualidade avassaladora. Maria lembrava-se do horror que sentira ao imaginar o pai com outra mulher, ao imaginar o pai com uma mulher. O asco que tinha à figura que bebericava golinhos estúpidos de uma marca de vinho conhecida, enquanto o pai, o seu pai, se levantava da mesa, na tentativa de lhe dar explicações sobre o que ela vira ou deixara de ver. Tinha sido aquele momento, aquela visão venusiana, entre um golinho de néctar divino e outro golinho do fel que emanava por cada poro, que dava o golpe final na pseudo normalidade em que Maria vivia desde que se conhecia que a fizera decidir. Iria viver a sua vida, o que quer que isso significasse. Ia viajar!

                                                                    ***

    Desceu as escadas devagarinho enquanto sentia o aroma cada vez mais forte daquela refeição que a aguardava. A cozinha parecia agora muito mais pequena, cheia de estudantes, caótica. Alguns conversavam, outros acabavam de arranjar a mesa, uma delas, muito ruiva e sardenta, junto a Francesca, mexia nas panelas com à vontade, manuseando energicamente a sua colher de pau, colhendo aqui e ali pequenas indicações da dona do refúgio. Procurou Li com o olhar até que a encontrou, sentada num pequeno banco redondo, de cotovelos pousados nos joelhos e face colada às mãos, observando dois jovens que jogavam xadrez, concentradíssimos, numa ponta da enorme mesa. Aproximou-se sorrateiramente, tentando passar despercebida mas todos davam pela sua presença, à medida que esta atravessava a cozinha. Sentiu a faces ruborizarem. Toda a sua vida desejara que reparassem nela, mas, por um motivo ou por outro, tinha sempre a impressão de que ninguém a via. Mas, naquele lugar longínquo, onde ninguém a conhecia, parecia que todos tinham a invulgar, a requintada capacidade, o dom de a verem. À esquerda e à direita iam surgindo acenos, sorrisos, gestos de boas vindas. Maria era olhada nos olhos com simpatia e delicadeza. No entanto, não sabia se estava contente ou triste com todas aquelas manifestações de carinho e acolhimento. Pareciam-lhe tão verdadeiras quanto belas. Tão simples, sem qualquer custo e por isso tão importantes. Encostou-se junto a Li, como se procurasse uma aliada, ignorando o sentimento impreciso que esta tinha provocado, pouco tempo antes, bem lá dentro do seu imaturo coração, ainda povoado por fadas e fantasmas, numa luta entre a magia e o algodão doce da infância e as agruras e amarguras da vida adulta, até então, tão apetecível. “Olá, outra vez.” Sorriu um sorriso doce, tão doce. “Quando eles pararem o jogo vou apresentar-tos.” Começou, referindo-se aos dois silenciosos jogadores. “São os meus melhores amigos aqui.” Maria esforçou-se por encontrar um tema de conversa que não as levasse para debates filosóficos. Tinha as suas próprias convicções mas ainda não tinha feito, mentalmente, a lista de argumentos necessária para os validar. Sentia-se desarmada. “Eles jogam xadrez, que giro.” “Nem sabes o quanto é bom eles terem descoberto este jogo. Eles são insuportáveis. Estão sempre a discutir… Ninguém os cala.” Mas estão a jogar juntos…” “Pois, é uma longa história. Na verdade eles adoram-se mas nunca concordam. “ Riu-se com vontade. “Pelo que eu sei chegaram ao refúgio no mesmo dia. O Sam veio de Nova York e o Anthony veio de Londres. Começaram nesse mesmo dia a discutir… e nunca mais pararam… Eu acho que agora já é hábito.” Maia riu-se também. Gostava o à vontade naquela casa. As pessoas conversavam, cozinhavam, jogavam… não sentia o silêncio frio que penetrava ela frechas de todas as janelas estilo art nouveau do seu apartamento junto ao mar. Aquelas correntes geladas que feriam, cortavam, massacravam a sua personalidade moldável. Ali tudo era colorido. A toalha da mesa, amarela, cor do sol, dos indecisos e dos girassóis. Calcando-a, pratos, diferentes entre si, parecendo fazer parte de uma qualquer pintura de surrealista. Os habitantes daquele refúgio, por si só, poderiam ser destacados para integrar uma nova arca de Noé, pela diversidade de raças, etnias, línguas, costumes… nacionalidades. Varias barreiras sócias… nenhuma barreira humana. Sentia-se no início dos tempos, onde eram todos irmãos. A ilusão durou pouco. Mal se apercebeu da sua chegada, Francesca veio na sua direcção, sufocando-a com mais um dos seus apertados abraço, agora juntando também Li e pedindo-lhe para tomar conta da nova hóspede, enquanto a fazia sentar-se no banco corrido e a servia, num enorme prato, de pilhas de uma comida perfumada e deliciosa. Lasanha. A carne corada pelo tomate escorria pelas placas de massa tenra, provocando  uma quente cascata no seu prato. Francesca,  cortou com os dedos capazes uma folha perfumada de um ramo, atado com um pedaço de ráfia e colocou por cima da lasanha fumegante desejando-lhe bom apetite. Repetiu o gesto vezes se conta, até que todos estivessem servidos, enquanto os seus refugiados distribuíam agua gaseificada pelo copos dispersos, numa confusão de bolhinhas e palavras. Durante alguns instantes, Maria isolou-se do resto do grupo, interiormente, enquanto levava a boca o garfo cheio daquela mistura. Sentiu primeiro o sabor ligeiramente ácido do tomate e logo depois, numa fração de segundos um leve sabor doce, enquanto a massa se ia desfazendo na sua boca. A sensação era agradável, deliciosa. Conjugava em pleno com o ambiente que via o seu redor. O rapaz que estava ao seu lado, vestido de camisa branca, apertada ate ao colarinho, mesmo naquela hora de calor abrasador, pediu-lhe gentilmente, por gestos, o pão. Assim que o passou para as suas mãos, observou-o partir a crosta ligeiramente bronzeada e estaladiça, e enchumbando o miolo de algodão doce na carne suculenta, tentou absorver o molho e colocou-o na boca, deliciado, deixando escorrer um ligeiro fio de molho pelo canto da boca, satisfeito. O rapaz, Joseph de seu nome, como veio mais tarde a descobrir, soltou um suspiro de satisfação prazerosa. Maria esqueceu todas as convenções e imitou-o saboreando aquela refeição de forma única. “Maria, compõe-te. Não quero que a vovó te veja com esses modos.” Maria de vestido branco, fita verde a marcar a cintura e sapatos de verniz. “Maria, para de mexer a cabeça. Vais parecer um espantalho.” Não tinha mais de cinco anos. Ficava quieta enquanto a mãe lhe puxava e puxava e puxava o cabelo, até que ficasse bem apertadinho atrás. “Quando a vovó chegar, vais logo cumprimentá-la. E vê se comes de boca fechada, ouviste?” Maria olhava pela janela. “E posso ir lá para fora mãe?” “Se podes ir lá para fora?” A voz elevava-se.” Se podes ir lá para fora? Eu estou aqui a arranjar-te para a tua avó não pensar que somos uns pelintras e tu queres ir lá para fora?” A voz da mãe atingia o expoente máximo de altura que as suas cordas vocais permitiam em curtos segundos. Maria calava-se e esperava pela vovó. Solene. Quieta. De vestido branco, muito branco. Tão branco. Lá fora a tarde ia passando, enquanto os outros meninos brincavam e a mãe ia convencendo a vovó de que não tinha sido uma péssima escolha do marido. “Veja a Maria, minha sogra. Como está tão bem educada. E como cresceu.” Eram estas memórias que surgiam no pensamento de Maria, enquanto molhava o pão no molho da lasanha da Francesca, com os dedos, sujando os dedos e a boca, engordurando os dedos e a boca e o queixo depois de um abraço da Francesca e de ter visto os afrescos de Miguel Ângelo. Encheu mais uma vez a boca até não poder mais e engoliu estas memórias tão distantes. Nem se lembrava que se lembrava delas. Tão longínquas que eram. De uma Maria que não era a Maria que ela era. Pelo menos, que não eram da Maria que ela queria ser. Dali em diante usaria sempre o cabelo solto. Riu-se de si para si. Que grande revolução iniciara entre duas garfadas de lasanha. Rapidamente limpou as mãos, já também avermelhadas e a boca ao guardanapo de flores quando ouviu um som conhecido. A mota de Pietro… Levantou-se e correu para a porta, ignorando os olhares dos companheiros de refúgio, sacudiu rapidamente as fitas para sair e ser absorvida pelo bafo quente daquela rua italiana…

    terça-feira, 19 de junho de 2012

    Capitulo VI

    A porta da pensão estava aberta. Maria segurou com as duas mãos as cortinas de fitas e esgueirou-se silenciosamente, ainda de faces rosadas de emoção, depois do passeio com Pietro. Começava a acalmar-se. Sentia o estômago sossegar, depois da intensa agitação que o tinha revolvido desde tão cedo, naquela manhã. Sentiu um odor agradável, de molho de tomate e massa fresca e viu uma outra presença, sentada no banco, escrevendo num bloco de folhas pautadas, com uma lapiseira garrida. A rapariga rapidamente levantou a cabeça, prendendo a cabeleira comprida e lustrosa, muito preta, num rabo-de-cavalo extremamente liso. A face abriu-se num sorriso, mostrando os dentes pequenos mas alinhados e arqueando levemente as sobrancelhas, mostrou uns olhinhos rasgados, de íris muito pretas e pequeninas, orientais e intensos. “Olá.” Dirigiu-se imediatamente à recém-chegada, enfunando vigorosamente os papéis desorganizados numa pasta de cabedal clarinho e levantando-se cheia de energia. “És a Maria, não és?” A panela de alumínio, ao lume, começava a fumegar, deixando transbordar pequenas quantidades de água, como que saindo da boca de um minúsculo vulcão. Enquanto Maria respondia baixinho umas palavrinhas quase impercetíveis de anuência, a rapariga baixou o lume, rindo-se com desenvoltura. Voltou-se novamente para Maria: “Se vens morar connosco, aviso-te já que nesta casa só há malucos. Mas não te preocupes porque é tudo boa gente.” Riram-se as duas. “E tu és…” A rapariga parecia ter mais ou menos a sua idade. Achou-a muito bonita, de pele ligeiramente morena e perfeita, muito lisa. A boca pequenina abriu-se e começou a explicação. Devia estar farta de se apresentar porque as palavras lhe saíram quase mecanicamente. “O meu nome é Li e sou macaense. Estou cá com uma bolsa a fazer o doutoramento.” Maria ficou impressionada. “Doutoramento? Quantos anos tens?” Mostrou-se surpreendida. “Vinte e seis primaveras, mas sei que não pareço ter mais de quinze…” Era bem disposta esta macaense. Bem diferente do pressuposto da mulher oriental, submissa, paciente e calada. “Já me contaram tudo sobre ti. Bem, tudo não… Sei que vens de Portugal e que foste assaltada…” Maria mostrou-se algo surpreendida. “Não te admires… Os italianos são assim. Pelo menos nesta casa. Aqui não há segredos!” “Já estou a ver que sim…” A dona da casa entrou pela cozinha dentro, de avental aos quadradinhos, rodeando uma das dobras preeminentes do seu largo abdómen. “Oh, minha querida. Estás aqui? Passaste bem a noite? Precisas de alguma coisa? Daqui a pouco vamos almoçar…” Abraçava-a fortemente enquanto Maria olhava para a companheira de casa pelo canto dos olho, suplicando ajuda para sair daquele abraço gordo e apertado, a cheirar a alfazema. “A Maria pediu-me ajuda para arrumar as coisas antes do almoço!” Sentiu o abraço afrouxar tão depressa como a tinha enlaçado e a dona da casa virar-se para os tachos e panelas que assobiavam freneticamente. “Vão, vão… Se precisarem de toalhas, têm na despensa… Mas não demorem porque o almoço está quase pronto.” Ainda a mulher não tinha acabado de falar, já elas se esgueiravam pelo corredor, sufocando risinhos. Maria ainda estava algo ofegante pela sensação claustrofóbica que o gesto lhe causara. Suspirou, assim que fecharam a porta do seu quarto. “Ainda bem que me salvaste. Estava a ver que sufocava!” Li sentou-se na cama desfeita. “A Francesca é muito afetuosa. Mas vais ver que te habituas. Não tarde nada estás tu a pedir-lhe um abraço.” Riram-se. Maria nem sequer se lembrava do nome da dona da pensão. Sentia a cabeça a flutuar. “Ainda não arrumei nada. Ontem estava tão cansada. Nem olhei para o quarto.” Li, entretanto encostada às almofadas, endireitou-se para ajudar. “Então vamos lá. O que precisas que faça?” Maria começava a amontoar algumas peças que ia retirando da mochila desportiva. “Já estás cá há muito tempo?” “Vai fazer em Setembro um ano.” Maria virou-se de costas para a colega que desdobrava as calças de ganga da portuguesa e as pendurava em cabides, abrindo uma das gavetas da cómoda antiga e depois de um curto silêncio, perguntou, pensando nos olhos profundos de Pietro e no calor que emanava do seu corpo, enquanto circulavam abraçados pelas ruelas de Roma. “Acreditas em amor à primeira vista?” Fechou a gaveta e voltou novamente o olhar para a companheira, abrindo uma bolsinha e dispondo os colares por cima da mesa-de-cabeceira, tentando desembaraçar os fios coloridos, com que se adornava. Para embaraços, já lhe bastavam os que sentia, lá no fundo da alma. “Claro que sim!” Afirmou convictamente. “É o único tipo de amor que conheço.” Continuaram em silêncio durante uns minutos, cada uma embrenhada nos seus pensamentos. Rapidamente arrumaram os poucos haveres de Maria. “Só trouxeste isto?” “Não tive muito tempo para fazer as malas.” Era em parte verdade. “E o que vieste fazer para Roma?” Maria adoraria saber responder àquela pergunta. Intimamente, compreendia ter fugido do mundinho em que vivia. Um mundo frio, onde não existiam aqueles abraços sufocantes, onde ninguém a via, ninguém a ouvia e ninguém a percebia. Fugia de uma mãe cuja preocupação era subir as escadinhas íngremes do sucesso profissional. De uma mãe que aproveitava as reuniões escolares para vender as apólices de seguros que lhe permitam alcançar os infindáveis prémios de vendas de que tanto se orgulhava, até durante as suas festas de aniversário. Fugia de um pai ausente, perito em reuniões fora de horas, esquecido dos seus projetos de ciências, das suas atuações de ballet e inconsciente do seu crescimento. Fugia do casamento falhado dos pais que lhe tolhia os movimentos, das suas faltas de respeito, das suas palavras ácidas e corrosivas que lhe deformavam a personalidade doce. Fugia do leque apertado de escolhas de que dispunha, fugia de um futuro certo numa profissão castradora que não a enriqueceria onde ela pretendia, no coração. Fugia até da pessoa que se estava a tornar, naquela sociedade enjoativa para onde a empurravam. “Vim… vim viver a minha vida.” Respondeu ao leve com uma falsa segurança. “Ah! E isso é o quê, viver a vida?” Perguntou Li mostrando, com uma pequenina dose de ironia, ter realmente vivido mais anos do que Maria. “Viver a vida é o quê? Pareces a minha avó. Sei lá, é fazer o que eu quiser.” Levantaram-se e começaram a fazer a cama, esticando bem os lençóis. “Se isso é viver a vida então estamos todos mortos. Ninguém faz só aquilo que quer. Se calhar é melhor pensares nisso antes que estejas tão ocupada a viver a vida que nem percebas que ela está a passar.” Maria calou-se. Achava despropositado uma desconhecida fazer considerações sobre a sua vida. O que poderia ela saber? Não tinha vivido o que ela vivera. Não sabia o que ela sofrera. “Obrigado por me teres ajudado.” Li percebia bem que tinha causado algum incómodo na nova habitante do refúgio. Não era a sua intenção. “Se precisares de alguma coisa, estou no quarto ao lado. Podes bater à hora que quiseres.” Maria agradeceu novamente e Li saiu do quarto, fechando a porta devagarinho. Maria deitou-se de costas, pensativa. “O que raio vou fazer com a minha vida?”

    sexta-feira, 15 de junho de 2012





    Capítulo V

    Subiram para uma motinha amarelada, já um pouco antiga e muito usada, mas muito útil, naquela cidade enorme e de trânsito caótico. Pietro levantou o assento ergonómico retirando dois capacetes e colocou um deles, com desenhos de asas, num fundo azul-bebé, parecendo homenagear os afrescos que tinham acabado de observar juntos, passando-lhe para as mãos um de cor rosada. Maria segurou no capacete entre as mãos, hesitante, e o rapaz, ao perceber a sua dúvida soltou rapidamente. “É da minha irmã, costumo levá-la ao trabalho.” Justificou-se, ajudando-a a colocá-lo e apertando-o de forma suave. Maria retirou os cabelos que tinham ficado presos dentro do capacete e fitou o rapaz que a olhava sorrindo, retribuindo-o. Subiram e Pietro arrancou com toda a força enquanto Maria, atrás, se agarrava cada vez com mais força. Primeiro timidamente, com medo de fazer demasiada força, depois com vontade, com medo de ser projetada pelas curvas e contracurvas daquela motoreta que virava à esquerda e à direita, numa sucessão de reviravoltas confusas e incoerentes, em que todos os edifícios pareciam iguais e todas as estátuas pareciam feitas pelo mesmo artista. Não fazia a mínima ideia de onde estava e nem sequer se preocupava. Estava pronta para descobrir aquele novo mundo com todas as suas forças.
    Pararam numa praça, La Piazza Navonna, bela, rodeada de edifícios gigantes, onde se destacava o palácio Pamphilj, sede da Embaixada do Brasil, talvez por Maria ter reconhecido imediatamente a bandeira canarinha. No centro, inúmeros turistas fotografavam a família ou os amigos em poses algo ridículas, frente a uma fonte onde se destacavam quatro enormes seres, com figuras de homens, entre rochas, rodeando um obelisco, símbolo máximo do poder e virilidade do império romano, importado do Antigo Egito. “La Fontana Quattro Fiumi, A fonte do quatro rios.” Apontou Pietro, depois de descerem ambos da mota, enquanto guardava distraidamente os capacetes no local de onde os retirara e Maria desviava os cachos que lhe tinham escapado para a frente dos olhos curiosos. “Quatro rios? Parecem quatro homens, no máximo quatro Deuses.” Aproximavam-se lentamente do centro da praça, procurando ver com mais pormenor a fonte. “Pietro começou a explicação. As figuras semelhantes a humanos na verdade simbolizam os quatro grandes rios conhecidos na altura, que por sua vez simbolizavam os quatro grandes continentes conhecidos.” Tinham chegado junto à fonte e Maria conseguia agora observar a delicadeza de traços de cada uma das figuras, num contraste um pouco brutal com a rudeza das pedras onde estas estavam pousadas. Conseguia perceber-se cada músculo, cada ligamento dos supostos rios, de tal modo que pareciam pessoas verdadeiras cobertas por uma fina camada de pó de pedra, tal era o realismo. “Este é o grande Nilo, de África,” apontava para um deles, “aquele é o rio Ganges, asiático e os do outro lado são o Rio da Prata na América e o Danúbio, na Europa.” “É impressionante!” Escapou-se dos lábios da rapariga que olhava atentamente cada detalhe enquanto ia deslizando à volta da fonte, seguida de perto pelo seu guia privado. “Pois é, foi esculpida Bernini, o mesmo que fez o baldaquino da Basílica de São Pedro.” Maria, tão submersa no banho de arte que tomava, acabava por se alhear do resto à sua volta e deixar escapar os pensamentos que, em qualquer outra situação, manteria secretos, bem lá no fundo da alma. “Estava a falar de ti.” Sentiu-se ruborizar e, de imediato, como que acometida por um choque de realidade, resolveu emendar enquanto Pietro sorria, naquele sorriso aberto e agradável de quem nada teme e nada esconde. “O que eu quero dizer é que sabes tudo sobre a história do teu país, da tua cultura. Percebes?” Fez uma pequena pausa procurando organizar as palavras de que precisava para se fazer entender. “Se isto acontecesse em Portugal, não saberia explicar-te nada deste género. Nada sobre a minha cultura. O máximo que poderia fazer era levar-te a um shopping para te mostrar lojas de marcas americanas ou a uma qualquer loja asiática, com milhões de pechinchas para recordações…” Pietro soltou uma sonora gargalhada. “Ah, eu sou uma pessoas suspeita para falar destas coisas. A coisa mais importante da minha vida é estudar os grandes artistas. E fiz montes de trabalhos sobre estas obras durante o meu curso. Cada um tem mais inclinação para um determinando assunto.” E virando-se para ela. “Tu, por exemplo, o que é que te apaixona? O que é que te faz falar sem teres noção de que está na hora de parar… O que te faz capturar uma turista que encontras num museu e desatar a falar sem lhe dar tempo para respirar?” Agora riam-se em conjunto, enquanto se iam afastando da famosa fonte. “Pois,” hesitou, “Não sei. Nunca me apaixonei assim por nada…” Encolheu os ombros e ambos permaneceram calados durante breves minutos até que Maria recomeçou. “Por acaso, há uma coisa que não me sai da cabeça há um bocado…” Perante a expressão curiosa do rapaz, disparou. “O que é um badalquino?”
    ***
    As horas iam passando enquanto os dois jovens, sentados num banco de pedra, iam saboreando um gigantesco donuts, como Maria lhe chamou, gulosamente barrado de creme de chocolate e o romano lhe explicava que badalquino era o que tapava o papa e o seu altar, no interior da basílica, que Maria não chegara a ver devido ao doce rapto que vivera, até que resolveram deixar a bela praça e voltar cada um para o seu ritmo. Quando deu por si viu-se a sair da mota e acenar ao condutor, já à porta do seu refúgio, retribuindo o seu sorriso. Estava na hora de decidir o que fazer da sua vida.

    quinta-feira, 14 de junho de 2012





    Capítulo IV

    A porta abriu ou, mais precisamente, escancarou-se, mostrando uma opulenta figura feminina que parecia retirada de um qualquer quadro típico de um casal de italianos a comer pasta. Enorme e rechonchuda, a dona da casa, recebeu-as com dois repenicados beijos, estalando nas bochechas de cada uma enquanto as empurrava para dentro de casa, onde cheirava a lar, mesmo tão longe de casa. A entrada fazia-se diretamente para uma cozinha, onde uma mesa grande, de madeira velha, ocupava o papel principal. Dois enormes bancos corridos, também de pau, ladeavam a mesa como que convidando sempre mais um a entrar. A conversa decorria entre Caterina e a mulher, que ia pondo as mãos na cabeça e abanando-a com ar indignado, enquanto exclamava “Poveretta[1]”. As faces inchadas e sardentas passavam uma imagem de aconchego quase maternal e os braços, parcialmente descobertos, grossos, pareciam estar prontos para abraços apertados e aconchegados. Gostou da pessoa que, à sua frente, a olhavam com bondade e simpatia e sentiu-se bem. Quentinha por dentro e por fora. Quando finalmente Caterina saiu e a dona da pensão a encaminhou para o seu quarto, Maria nem sequer o viu com olhos de ver. Limitou-se a despir-se e a deitar-se no meio dos lençóis cheirosos e esticados, coberta com um edredão fofinho e leve, como as penas de que era feito, tal qual como se estivesse coberta por nuvens e adormeceu, levada por sonhos de anjos de olhar esverdeado que a apanhavam quando caía por entre as nuvens, observada por mulheres gorduchas e sardentas que comiam pasta. 

                                                                                  ***
    A Praça de São Pedro era simplesmente avassaladora. Entrou no Vaticano pelas nove da manhã. Queria aproveitar todos os segundos e não tinha conseguido descansar, no meio dos inúmeros sonhos que a tinham atormentado durante toda a noite, devido aos acontecimentos que se tinham passado na sua vida no dia anterior. Parecia-lhe que tinha deixado Portugal há semanas e, no entanto, tinham passado apenas algumas horas. Como a praça estava praticamente vazia, resolveu sentar-se a olhar para a Basílica. Observou-a e quase se arrepiou com a luz que emanava. As cores que a banhavam naquele clarear quase esverdeado de início da manhã fizeram-na lembrar uma pintura, tamanha a beleza que a envolvia. No meio daquela imensidão, envolta no silêncio e no misticismo do lugar onde se encontrava, foi invadida por uma paz que nunca tinha conhecido. Ali era o local máximo do cristianismo e o mínimo que se esperava era sentir o peso dos olhos de Deus pousados nas costas de cada cristão como que num julgamento antecipado mas, no entanto, a sensação que tinha era de leveza, como se Deus não fosse aquele Severo Julgador que lhe tinham apresentado na catequese, mas uma energia clara, brilhante e positiva que emanava amor entre a humanidade. Caterina tinha toda a razão. O primeiro lugar a visitar em Roma era sem dúvida aquele, o que lhe podia abrir o coração e fazê-la compreender se estava a caminhar na direcção certa. Ali sentia-se um pouquinho mais perto de Deus.

    ***
    Embora tivesse decidido que visitaria primeiro a Basílica, uma força quase real, quase física, fez com que fosse caminhando pelas ruas que rodeavam as altas muralhas do micro estado, enquanto as imagens televisivas que tinha na cabeça se iam esvanecendo, pouco a pouco, dado as diferenças que tinham com a realidade, até chegar à porta do museu. Cá fora, apesar de ser ainda cedo, já os vendedores de recordações montavam as suas improvisadas bancas, recheadas de pequenos tesouros, acessíveis a qualquer bolso turístico. Terços perfumados com imagens papais, imanes, pins ou postais representativos dos locais mais visitados estavam espalhados pelas mesas, à espera de novos donos.
    A própria entrada do museu era magnífica. Os vendedores dos bilhetes, colocados ao fundo de uma enorme sala, estavam isolados em cabines como Maria só tinha visto nas auto-estradas. Dirigiu-se a uma delas, sem ninguém na fila e aguardou que o funcionário colocasse um marcador de livros dentro do exemplar de bolso que lia atentamente e lhe vendesse o bilhete.
    Dentro do museu, com o mapa do mesmo na mão, começou a vaguear, deixando-se levar por aquela atmosfera surreal. Caminhava entre obras de arte, numa concentração imensa, tentando absorver na sua mente pequenina, aquela enorme quantidade de informações e imagens de uma beleza alucinante, de aspeto eterno e perfeito, capazes de permanecer belas, indiferentes à passagem lenta mas corrosiva dos séculos. Avançando pelos corredores, depressa chegou à famosa capela sistina, lugar onde se realizavam os conclaves para escolher um novo papa. Assim que entrou na capela, ficou assombrada com os desenhos e as cores. Mesmo àquela hora matutina, estavam já muitos turistas dentro daquele diminuto espaço, tão conhecido por todo o mundo. Toda a capela era absolutamente bela, num sentido quase divinal mas o que mais lhe chamou a atenção foi o teto, totalmente coberto por imagens bíblicas, perfeitamente proporcionais, de forma a parecerem reais. De cabeça empinada e nariz no ar, observou atentamente os anjos e querubins, sentados ou deitados nas colunas desenhadas de forma a parecerem em alto-relevo. Desenho após desenho, colocando-se em bicos de pés para ter a sensação de estar mais perto, quase flutuava pela nave com os olhos ansiosos por gravar aquela sensação de perfeição que ia absorvendo. Rodeada por guardas e turistas, facilmente se abstraiu do que se passava ao seu redor. No centro do teto, uma imagem especial, reconhecida dos manuais de história pelos quais estudava no secundário, representando a criação do mundo, fez com que rodasse sobre si mesma para conseguir ver melhor os anjinhos que acompanhavam Deus nesse momento decisivo para a humanidade, até bater, sem querer nas costas de alguém, desequilibrando-se pela segunda vez no espaço de dois dias.
    O momento seguinte teve um impacto mil vezes maior do que todas as pinturas que um qualquer pintor, clássico ou moderno pudesse alguma vez ter feito. Quem a fitava, perdido de riso, do fundo dos seus olhos verdes e pestanudos era o mesmo rapaz que a tinha ajudado no avião. Maria deve ter corado até à raiz dos cabelos porque o rapaz pareceu ficar subitamente aflito. “Parece que precisas de arejar!” De facto, também achou que precisava de apanhar ar porque, por um lado, ele segurava-a num equilíbrio precário para ela não cair e por outro lado, estava cheia de vergonha por encontrá-lo novamente naquela situação. Ele devia achá-la uma pateta, sempre a cair. “Eu estou bem.” Repreendeu-se instantaneamente por ter dito aquela frase. “Que ridícula… Devia ter dito alguma coisa mais interessante.” Pensou enquanto se apoiava ao de leve no braço livre do rapaz para se equilibrar, libertando-se definitivamente daquele embaraço, e tocou na lã fofa da camisola rosa velho, de decote redondo, a contrastar com o moreno da pele do jovem. Ele afastou-se lentamente, mantendo o olhar preso em Maria, que pensava no que deveria fazer ou dizer para não desperdiçar aquela oportunidade, tão inesperada mas tão agradável de conhecer o rapaz mistério. “Também vieste de Portugal, não foi? Eu vi-te no avião.” Foi a deixa que ele precisava. Também ele tinha sentido curiosidade, também ele tinha sentido aquele fascínio por aquela miúda que andava tanto com a cabeça nas nuvens que estava sempre a cair. “Parece que fui apanhado.” Respondeu, risonho. “É verdade, cheguei ontem de um intercâmbio em Portugal. Uma parceria entre as universidades italianas e portuguesas. Já ouviste falar do programa Erasmus?” Então era isso. Maria respondeu um pouco mais à vontade. “Sim, já ouvi falar…Então és estudante…” Resolveram sentar-se nos bancos corridos de plástico transparente, colocados dos lados da capela, certamente para proteger as paredes de mãos malandras, de onde podiam observá-la por inteiro. De tão perto que estavam, embora sem se tocarem, Maria até conseguia sentir o seu perfume quente e algo exótico. “E estudas o quê, pode-se saber?” A resposta foi prometedora. “Hum, se adivinhares, dou-te um doce…” Maria achou que era a oportunidade ideal de garantir um novo encontro e esforçou-se por pôr em prática o seu lado de detetive. “Dás-me pistas?” “Hum…” brincava, fingindo-se pensativo, de olhos postos no céu tingido de índigo, enquanto coçava a cabeça, como se estivesse indeciso, para depois rematar com um decidido ”Não!” Maria resolveu entrar no jogo e fingir-se muito atenta. Fazendo uma cara séria, semi-cerrou os olhos e começou a divagar. “Bem, chegaste ontem de um país diferente e em vez de estar com os teus amigos, vieste ver um teto pintado há quinhentos anos… Ou és um bocadinho avariado dos pirolitos”, não conseguiu dominar o riso enquanto rodava o indicador, fazendo círculos de um lado da sua própria cabeça, “ou então gostas de pintura! Então, acertei?” Fitou o rosto do rapaz ansiosa pela sua reacção mas este manteve-se sereno. “Em primeiro lugar, senhora detetive, não é um teto qualquer… É o teto que o grande Michelangelo pintou, e depois”, uma pequena pausa depois de enfatizar com veemência o artigo o, que precedia o famoso teto “tenho a informá-la que acertou.” A brincadeira acabou por dar numa vénia. “Tens jeito para isto, sim senhor. Bem, eu estudo História de Arte. Na verdade sou um apaixonado por Arte e este pareceu-me o caminho mais natural a seguir. Depois, logo se vê…” Encolheu os ombros como quem conclui um assunto. “Então e o que foste fazer para Portugal? Com certeza não foste comer pastéis de Belém?!” Novo motivo de risota. “Olha que só por isso valia a pena, mas não. Fui para lá estudar as vossas grandes obras. Portugal tem um património artístico imenso.” “A sério? Não percebo como é que um romano, com esculturas ao virar de cada esquina, acha piada a um país, deixa-me pensar como vou dizer isto… romanizado!” A conversa tendia a tornar um rumo cada vez mais íntimo mas cada vez mais interessante. “Eu acho que tem tendência a ser assim. Cada povo não dá valor ao que é seu, acha sempre que o que é de fora é melhor…” Maria respondia, concordando. “Pois, a galinha da vizinha é sempre melhor.” “Como?” Obviamente não tinha percebido. “Oh, esquece, é uma expressão tipicamente portuguesa.” Riram-se novamente e cruzaram os olhares, por uma fracção de segundos, para logo de seguida se fixarem ambos num qualquer ponto aleatório. “Sabes o que mais me emocionou encontrar em Portugal? Não foram os grandes monumentos, quadros ou esculturas.” E virando-se para ela, novamente. “Nem mesmo os pasteis de Belém.” Riram ambos. “A peça que eu mais gostei de ver foi uma pequena cruz de ferro, perdida no meio de um espólio riquíssimo.” Maria franziu a sobrancelha. “Uma cruz de ferro?” Perguntava incrédula. “Exatamente, uma pequena cruz de ferro. A primeira cruz que os índios no Brasil viram. A cruz que foi utilizada na primeira missa rezada no Brasil. A cruz que levou novos mundo ao mundo. Queres património maior do que esse? E essa cruz está lá, perdida, no meio de tantos outros objetos, num dos museus de Braga, numa pequena cidade, num pequeno país.” “Estou a ver que sabes muito sobre Portugal, até já estás a citar Camões…” O rapaz explicava muito sério. “Estas a ver como é a nossa cultura? Tu és portuguesa e se calhar nunca viste essa cruz ou nem sequer leste Camões.” Ficaram em silêncio novamente. Conheciam-se há uns minutos e estavam a partilhar a conversa mais honesta e profunda que alguma vez tinham tido. Para Maria, a única coisa sobre a qual as suas amigas sabiam falar era a última moda ou as coscuvilhices do costume. Já em casa, nos últimos tempos era impossível qualquer tipo de conversa. Para ele, os amigos sempre acharam um pouco demais passar horas a desenhar e pintar ou a estudar a vida dos grandes artistas por iniciativa própria. Mesmo na família, não encontrava grande abertura a este tipo de discussões. Eram gente mais prática e fazia-lhes confusão a preocupação do filho com estas questões. Maria recomeçou a conversa. “Sabes que por uns momentos fiquei preocupada.” Observou a cara de apreensão dele enquanto a fixava. “Pensei que o que tinhas gostado mais tinha sido uma boa francesinha.” Soltaram uma sonora gargalhada, esquecidos do local onde estavam, que logo taparam com as mãos, depois dos olhares reprovadores dos que os rodeavam, concentrados em observar os nus e anjos e ninfas dos afrescos. “Tu só falas em comida.” A rapariga respondeu-lhe baixinho, sussurrando para não incomodar mais ninguém. “Na verdade, estou cheia de fome.” “A sério? Então anda comigo que eu vou mostrar-te uma coisa melhor que os pasteis de Belém ou a francesinha. Não te esqueças que estou a dever-te um doce!” Levantou-se de um pulo, logo seguido por ela. “Agora? Mas ainda não vi o resto do museu.” “Deixa lá, depois vemos o resto.” No interior da cabeça de Maria, os pensamentos começaram a disparar a uma velocidade alucinante enquanto o ia seguindo através do emaranhado, cada vez mais denso de pessoas, até a uma porta localizada exatamente do lado contrário ao que tinha entrado. Quando é que se tinham tornado um nós? Ainda mal se conheciam e já conversavam na famosa Capela Sistina, sob o olhar atento do Criador. Decidiu deixar-se levar por aquele italiano de olhar doce e palavras mágicas. Fosse como fosse, mesmo que não quisesse, já estava presa. Aquele rapaz tinha-lhe lançado uma teia invisível que a ia cativando cada vez mais. Lembrou-se de um pormenor. “Espera,” ele voltou-se a meio do caminho, “Como te chamas?” “ Pietro”, respondeu, novamente mostrando aquele sorriso aberto de quem está de bem com a vida, dentes brancos e perfeitos, como de porcelana brilhante. “E tu?” “Maria” “Maria”, repetiu, acentuando muito a primeira sílaba, “como Nossa Senhora. “Piacere di conoscerti[2], Maria.” Deu-lhe a mão quente como que para a cumprimentar mas agarrou-a logo que se tocaram, voltando a virar-se em direcção à porta, como se a guiasse. “Cerchiamo di andare avanti[3], Maria.” E desceram as escadas que se seguiam à porta e que davam para a praça de São Pedro, de mão dada, em passo rápido, rumo a uma nova vida, que nunca mais seria igual, agora que se tinham conhecido. Seguiam rumo ao desconhecido. Seguiam rumo ao destino…



    [1] Coitadinha.
    [2] Muito prazer.
    [3] Vamos.

    quarta-feira, 13 de junho de 2012


    Capítulo III


    O primeiro impulso que teve foi chorar, pegar nos trocos que tinha recebido na pastelaria e telefonar de um qualquer telefone público a alguém. Alguém que não fosse o pai nem a mãe. No entanto, segurou as lágrimas de raiva e decidiu emudecer a dor por ter perdido o telemóvel, aquele telemóvel que tinha lutado tanto para ter, aquele objeto que tinha despoletado a sua fúria, quando ainda estava em casa, com os pais.
    Agora era uma adulta, ia comportar-se com tal e iria provar a todos que conseguia desenrascar-se sem ajuda. Afinal já tinha dezoito anos, era a única responsável por si própria e não podia falhar. Tinha acusado os adultos da sua família de ser irresponsáveis e não ia dar-lhes o gosto de a verem falhar.
    Pensou no que deveria fazer e veio-lhe à ideia a cara redondinha e branquinha da empregada da pastelaria. Era isso! Eram praticamente da mesma idade e ela parecia simpática, alem disso, como trabalhava ali, com certeza conhecia a zona.
    Voltou à rua principal, onde o barulho dos carros e das motas continuava alto. Entrou novamente na pastelaria, procurando ansiosamente o rosto da jovem que estava naquele momento a repor os bolos na vitrina apetitosa. Pensou no que deveria dizer-lhe para que esta ajudasse mas não foi preciso. Ao ver os seus olhos vermelhos, foi imediatamente ter com ela.
    Em inglês, a conversa começava a ser mais fluida. Mentalmente, agradecia ao seu Deus tê-la mantido atenta mas aulas daquela disciplina. O facto de a professora ser uma morena bem disposta, sempre pronta a conversar acerca das suas experiências em terras do tio Sam, também contribuiu. Sim, prestara atenção e agora conseguia comunicar, conseguia desenrascar-se, que era o que precisava naquele momento. Mostrou-lhe o papelinho amachucado e a rapariga de avental, muita séria, semicerrou um pouco os olhinhos curiosos para logo de seguida acenar que sim, sabia onde ficava e sim, ia levá-la lá. Agora restava-lhe esperar que a pastelaria fechasse, a rapariga fizesse as contas e arrumasse tudo, o que ainda ia demorar. Resolveu ficar à janela e observar o movimento. Como era imponente aquela cidade. Agora sabia porque os exploradores do século XVI chamavam Novo Mundo aos locais onde chegavam. Parecia que o próprio ar que respiravam era diferente, que as pessoas eram feitas de uma outra qualquer matéria. Aquele era o seu novo mundo.

    Anoitecia. À medida que a quantidade de luz ia diminuindo nas ruas, o número de pessoas começava também a diminuir, enquanto o trânsito, nas artérias principais da grande cidade, continuava intenso e algo frenético. Na azáfama do final do dia, centenas de pessoas se apressavam para chegar a casa, depois do dia de trabalho e centenas de outros, turistas, se apressavam também, na espetativa de verem os últimos monumentos, antes de se recolherem para saborear alguma iguaria típica, num dos inúmeros restaurantes franchisados, caçadores de turistas esfomeados e desgastados pelas inúmeras horas de passeios a pé pela cidade eterna. As duas raparigas meteram por uma ruela transversal à principal, enquanto conversavam em inglês, já com um certo à-vontade. Na verdade, ainda que Maria não tivesse grande vontade de falar, a sua guia, Caterina, era aquilo que se podia chamar uma gralha. Falava sem parar, num inglês muito modificado pela acentuada musicalidade presente na língua da rapariga italiana, mas bastante perceptível, pelo menos para qualquer estrangeiro porque, e poderia jurar, certamente não existiria um único inglês de Inglaterra que percebesse uma palavra daquela ladainha. Maria pensou que tinha que aprender a falar a língua autóctone, isto se queria arranjar um emprego rapidamente. Bem, na verdade não tinha grande opção porque o dinheiro que tinha consigo apenas chegava para pagar o adiantado na pensão e pouco mais. Tinha mesmo que pensar em ganhar uns trocos mas, para já, o que precisava era de um bom banho e uma cama quentinha para retemperar forças. “And you? Do you have any brothers or sisters?[1]” Apercebeu-se de que deixara de ouvir a sua companheira durante uns bons minutos, enquanto continuavam a andar a um bom ritmo, cada vez mais distantes do centro. “No, I don’t. I’m na only child.[2]” O assunto não era bem-vindo. Tinha viajado para aquele país com o intuito de esquecer que tinha família. O que menos queria era ouvir perguntas sobre ela. Caterina parou à entrada para uma pequena viela, olhando uma vez mais para o papel que Maria lhe tinha passado para as mãos, como que a confirmar que estavam na rua certa. “We’re here![3]” A rapariga apontou para uma pequena tabuleta, a cerca de dez metros, onde estava escrito o nome da pequena pensão “Il rifugio del viaggiatore[4]” em letras pequenas e desenhadas, num estilo ligeiramente medieval. A estradinha do beco era feita de pedras pequeninas, ladeada por plantas verdes e viçosas, colocadas em vasos colados à parede, como que a combinar com a enorme trepadeira que rodeava a porta velha, do lado esquerdo da ruinha sem saída, ainda com batente e a janela que a acompanhava. As paredes eram algo velhas, com a tinta a descascar e o escuro da noite que se tinha posto totalmente, provocaram-lhe um pequeno arrepio, enquanto Caterina fazia pender o batente, com estrondo, na porta fechada.









    [1] “E tu? Tens irmãos?”
    [2] “Não. Sou filha única.”
    [3] “Chegámos.”
    [4] “O refúgio do viajante”

    terça-feira, 12 de junho de 2012


    Capítulo II

    O autocarro que a levava a Roma ia cheio, numa confusão de malas e maletas, de gente de várias nacionalidades que falava várias línguas, uns com os outros ou ao telemóvel. A paisagem que observava, pelo vidro da janela já quente daquele final de manhã de Verão, assemelhava-se muito ao que os seus olhos estavam habituados. De facto, se evitasse ler as palavras escritas nas lojas ou na sinalização, poderia mesmo acreditar nunca ter saído de Portugal. Assim que entraram em Roma, começou a notar algumas diferenças e a acreditar, finalmente, que estava num país diferente. O centro da cidade era muito imponente. Os edifícios, muito altos mas também regulares entre si, eram verdadeiramente magníficos. Seguiam-se uns aos outros, imprimindo uma sensação de austeridade a quem se apertava dentro de um diminuto autocarro que passava desapercebida aos habitantes locais que circulavam em torno das suas vidas, alheios ao que os rodeava. O trânsito, congestionado, fazia com que se tornasse cada vez mais demorada a curta distância que faltava para chegarem à estação. Maria começava já a ficar incomodada. Primeiro a viagem de avião, depois o passo de caracol com que se dirigiam à cidade, os gritos das pessoas que se tornavam cada vez mais impacientes até que se apercebeu que era hora de almoço e ainda não tinha comido nada. Assim que se lembrou disso, foi como se o cérebro tivesse ido contar ao estômago porque ele começou repentinamente a reclamar com roncos doridos. Precisava de sair daquele autocarro quente e abafado, senão iria desmaiar de fome. Já sentia mesmo as faces a rosarem. Pegou na mochila e encaminhou-se, aos tropeções, pelo corredor do autocarro até chegar junto do condutor, um homem de meia idade, barrigudo e com as pontas da camisa de fora, que suava em bica, enquanto tentava fazer passar o autocarro pelas ruas cheias de automóveis frenéticos. “Por favor,” começou de mansinho, tentando chamar a atenção do homem que nem se virara para ver o que se passava, “por favor, preciso de sair. Pode por favor parar para eu sair?” O condutor, de bochechas vermelhas de raiva devido ao trânsito, limitou-se a carregar num botão para abrir a porta automática e parar uns segundos, provocando um solavanco que quase fazia virar o autocarro e por pouco não precipitou Maria para uma saída ainda mais rápida pelo vidro da frente. Segurando a mochila, agora presa nos dois ombros para evitar situações embaraçosas como a da manhã, saiu rapidamente do autocarro, mesmo no segundo em que o homem carregava com o pé direito no acelerador, voltando à agitada viagem. O ar, fora do autocarro, era ainda muito quente, embora, em alguns locais, à sombra, se conseguisse uma temperatura mais agradável. Precisava de comer alguma coisa, enquanto pensava numa forma de encontrar a pequena pensão onde iria ficar, que tinha contactado, ainda antes de partir, por telefone. Viu um cafezinho na esquina, do outro lado da rua e resolveu aventurar-se a atravessar a estrada enorme e absolutamente entupida para lá chegar. Os passeios da enorme rua estavam apinhados com gente de todos os estratos sociais.
    Por um lado, as mulheres, de saias justas e travadas pelos joelhos, conjugadas com sapatos de salto agulha, com os seus lenços de caxemira a cobrir-lhes os ombros subidos e os homens com fatos de bons cortes, todos de pastas de executivo nas mãos cuidadas. Alguns entravam por portões abertos que deixavam ver belos jardins interiores com esculturas, muitos deles guardados por seguranças muito armados e rigidamente fardados, possivelmente vigiando grandes e valiosos tesouros ou documentos. Por outro lado, os turistas, tantos e tão diversificados, com as suas mochilas a abarrotar e as câmaras, seguras precariamente em mãos cheias de mapas da cidade, em busca das melhores recordações da cidade eterna. Os romanos, esses, permaneciam adormecidos nas suas profissões e rotinas, esquecidos da importância dos pequenos e grandes marcos históricos pelos quais eram rodeados diariamente. Decidiu atravessar logo a seguir a uma fila de táxis, que se iam chegando para a frente, sempre que o primeiro recebia mais um cliente e o taxista pousava o jornal desportivo com que ia enganando a madorna, prolongada pelo sol quente de início de tarde. A pastelaria era muito agradável e fresca, sendo muito incaracterística, parecia-lhe que ia a qualquer momento, pedir uma bica e um pastel de nata, numa qualquer rua de Lisboa. Assim que a viram entrar, uma moça nova e loira dirigiu-se-lhe quase instantaneamente com um sorriso caloroso. “Buon pomeriggio. Sono in grado di servirlo a mangiare.”[1] A cara de Maria demonstrou exatamente o que tinha percebido, ou seja, nada. A empregada sorriu novamente, divertida, no seu aventalzinho redondo, de risquinhas cor-de-rosa e amarelo, a combinar com o papel de parede por detrás do balcão. “English?”[2] perguntou, experiente. A rapariga, mais satisfeita e ansiosa por praticar o inglês aprendido nas aulas do secundário, respondeu rapidamente. “Yes, please, I’d like something to eat. What do you recomend?”[3] Simpática, a rapariga riu muito, um riso aberto e virou-se para o balcão, voltando à mesa com o que lhe parecia ser um copo de leite com chocolate e um pedaço de pão. “Cappuccino con cioccolato e una fetta di Caprese al Limone.”[4] Pousando a refeição na mesinha, foi imediatamente receber os novos clientes que iam entrando, com o mesmo sorriso. O leite morno, levemente salpicado de canela em pó, soube-lhe imensamente bem, restituindo-lhe as cores e as forças. Deleitou-se a olhar o movimento pela janela, absorvendo o cheiro adocicado dos bolos frescos. Pagou e dirigiu-se para a porta, despedindo-se também ela com um sorriso da funcionária que lhe acenava. De volta à rua, embalada nos pensamentos, continuava a subir a rua, embora não tivesse ideia porquê, uma vez que não seguia qualquer direcção. Sentia vontade de observar, de sentir na pele e no espírito a nova cidade onde ia viver. Precisava de interiorizar que já lá estava e que já não sonhava no interior do seu quarto fechado.
    Decidiu então ir conhecer o local onde iria ficar e pousar as coisas. Pegando no telemóvel da mochila, virou numa ruazinha à direita, evitando o barulho dos carros e começou a retirar o papelinho amachucado com o nome da pensão e o número de telefone. Estava tão concentrada a retirá-lo do bolsinho pequeno das calças de ganga justas onde o tinha colocado para não o perder que não se apercebeu do pequeno grupo que se aproximava silenciosamente. A sensação seguinte foi de desequilíbrio. Um dos rapazes, de boné enterrado até às orelhas para não ser identificado, andou na sua direcção até a fazer cair, enquanto o outro lhe retirava suavemente o telemóvel da mão que o segurava. O terceiro elemento da pequena quadrilha atenta a turistas desatentos, ficava na esquina movimentada a vigiar. Em poucos segundos o grupo desapareceu entre a multidão e Maria deu-se conta da sua situação. Estava num país estrangeiro, não falava a língua e não fazia a menor ideia para onde se dirigir. Estava perdida…




    [1] “Boa tarde! O que posso servir-lhe?”
    [2] “Inglês?”
    [3] “Sim, por favor. Queria alguma coisa para comer. O que recomenda?”
    [4] “Capucino com chocolate e uma fatia de bolo de limão.”

    segunda-feira, 11 de junho de 2012


    Capítulo I

    Quando o avião levantou, finalmente, as rodas do tapete negro da pista do aeroporto, sentiu um alívio quase carnal. Por alguns momentos, sentiu elevar-se também o peso que carregara nos ombros durante os meses anteriores e quase sentiu suavizarem-se-lhe as feições jovens, quase de menina, quase de mulher. Os dezoito anos recentemente completos permitiam-lhe procurar finalmente a paz interior e deixar os supostos adultos da sua família mais próxima gladiarem-se sozinhos. Finalmente, via-se fora do circulo venenoso para o qual fora arrastada e onde servia de arma de arremesso.
    Instalada junto à janela, não conseguia desviar o olhar das casas que iam ficando cada vez mais pequenas, dos quadradinhos cultivados junto das pequenas propriedades onde se iam deixando de ver as pessoas que se tornavam pontos, pontinhos em movimento até deixarem de se ver, tapados pelas nuvens brancas e fofas em que apetecia tocar.
    A imagem que via refletida no vidro grosso da janelinha era agradável. Os cabelos castanhos encaracolavam, mostrando reflexos de um tom de ruivo intenso, vindo da luz do sol morno que penetrava forte, sem oposição, no avião cheio. A cara, emoldurada até aos ombros, ligeiramente morena, mostrava uns olhos castanhos curiosos e atentos, sempre bailando, feita borboleta tonta, de lugar em lugar, de cor em cor, de vida em vida. A avó costumava dizer que tinha também uma boca malandra, curtinha, redondinha, sempre pronta a dar opinião, sempre vermelha como uma cereja madura, que fazia um par perfeito com o nariz arrebitado, de quem acha que sabe tudo. Do alto dos seus dezoito anos completos, na sua primeira viagem de avião, achou-se bonita, livre, leve e fechou a cortininha, evitando o sol que começava a cegá-la. A ordem para colocar os cintos tinha sido retirada através da luz apagada no pequeno painel por cima da sua cabeça e entretinha-se a observar as hospedeiras de bordo, impecáveis nos seus fatos azuis de mar, com uma risquinha vermelha e nos seus cabelos muito puxados, empinados em cima da cabeça, em rabos de cavalo perfeitos e solenes. Colocadas estrategicamente no corredor, explicavam, através de gestos repetitivos, as instruções que se iam ouvindo relativamente à segurança e saídas de emergência. Uma vez após outra, iam repetindo os gestos, enquanto alteravam a língua que se ouvia em todo o avião. Ainda ficou atenta à primeira explicação, em português, mas depois, já se ouvia inglês, os olhos começaram a divagar pelos parceiros de viagem. Junto de si, no lugar colado ao seu, uma mulher loira, muito pintada, dormia a sono solto de boca escancarada, desde que se tinha sentado no lugar. Logo a seguir, um homem de fato castanho formal, esforçava-se por ler o jornal, português, no espaço pequenino entre si próprio e a cadeira da frente, ocupando metade do estreito corredor, onde agora se fazia uma espécie de procissão para ir ao minúsculo compartimento que servia de casa de banho, incomodando quem passava. Do outro lado do corredor, um casal de meia-idade, mostrava aos ocupantes dos bancos seguintes as fotografias dos vários netos que tinham ficado em casa, entre sorrisos e pequenitas lágrimas de saudade antecipada. Mais à frente, dois gémeos, pequenos, sardentos, puxavam os cabelos de uma adolescente gordinha que viajava sozinha e que, bastante irritada, ponderava já pregar-lhes um par de estalos. Olhou por cima dos bancos para o fundo do avião procurando alguém interessante com quem conversar mas só viu um grupo de jovens, em grande algazarra a falar alemão. Definitivamente, não tinha tido sorte. Não encontrava vivalma com quem partilhar umas palavras nas quase duas horas que durava a viagem. Decidiu observar novamente pela janela para se distrair e alegrou-se quando viu o mar, por baixo deles. Nunca tinha sobrevoado o mar Mediterrâneo. Encostou a testa ao vidro, impaciente por aterrar e fechou os olhos por uns momentos enquanto as hospedeiras iam e vinham, com carrinhos repletos de bebidas, perguntando em várias línguas se estavam interessados numa delas. Devia ter adormecido porque o que ouviu de seguida foi a ordem para apertar os cintos, juntamente com o burburinho dos passageiros a alisar as roupas e pegar nas revistas caídas durante os breves sonos. Por instantes, abriu os olhos, mantendo-se encostada à janela e viu um perfil masculino. Pensou que ainda estava a dormir e a sonhar e portanto piscou várias vezes os olhos. Observou atentamente o vulto e pareceu-lhe ver um anjo, tal a perfeição de traços que o definiam. O rapaz, também jovem, olhava pela janela com ar sonhador, até que baixou a cabeça, voltando a concentrar-se num livro que lia. A viagem passara rapidamente. Um novo mundo se aproximava. Assim que o avião começou a pousar e os ouvidos a estalarem com a diminuição repentina de pressão, abriu a cortina da janela e respirou profundamente. Finalmente, chegara ao destino. Um novo mundo, pleno de possibilidades se abriria, em poucos minutos, perante si.
    O avião pousara suavemente provocando um forte aplauso aos tripulantes e uma algazarra ainda maior entre os jovens alemães, de faces corada, que se acumulavam nas traseiras do avião. Os passageiros aproveitaram para se ir levantando e esticando as pernas já doridas e sem forças, das horas em que tinham passado encolhidas e a rapariga para tentar ver melhor o jovem que lhe tinha chamado a atenção. Infelizmente, só conseguira perceber o quanto era alto porque ele mantinha-se virado para a frente do avião, colocando a mochila preta, aos ombros, em silêncio. Decerto viajava sozinho porque não o via conversar com ninguém e assim não conseguira descobrir a nacionalidade, naquela miscelânea de pessoas. Virando o olhar para os seus gestos, reparava nas mãos grandes, as unhas perfeitas, cortadas rente à pele. Arrumava também o livro que se entretivera a ler, durante a viagem. Não era português, agora tinha a certeza, ao tentar ler as palavras escritas na sobrecapa. No entanto, não conseguira ler uma palavra, tão rápido que o livro desapareceu do seu campo de visão.
    Dada a autorização para saírem do avião, Maria apressou-se a sair do lugar com a intenção de retirar a sua própria mochila e seguir um pouco mais aquele rapaz mistério. Mas, enquanto ele saía com facilidade do seu lugar e seguia pelo corredor do avião, quase que empurrado pelos passageiros impacientes, que se movimentavam como uma massa homogénea, ela esperava que a mulher ao seu lado acabasse de retocar a horrível maquilhagem berrante para a deixar passar. No momento em que se desviava com a pose de primeira-dama, já o rapaz tinha saído do avião e se dirigia ao aeroporto. Retirou a mochila pequena do porta bagagens localizado acima das cabeças dos passageiros e, colocando-a sobre um só ombro, deixou-se levar pela onda que se mantinha em andamento, lento mas contínuo e ia passando em frente do comandante e da tripulação que, sorridente, se mantinha em pose de despedida, acenando. “Finalmente, finalmente cheguei…”, pensava enquanto ia descendo as escadinhas no fim das quais se aglomeravam os passageiros à espera do mini autocarro que os levaria à porta de desembarque e saboreando o vento fresco e agradável daquela manhã de Julho, que lhe despenteava os cabelos. No último degrau, parou por uns segundos, inspirando fundo e… tropeçou, feita tonta, na alça que pendia da mochila pendurada, estatelando-se ao comprido no chão italiano em que tocava pela primeira vez. Que entrada ridícula, naquela viagem de iniciação, que inicio auspicioso daquela aventura… Corada até às orelhas, esforçou-se por apanhar as bugigangas que caíam da mochila entreaberta, tentando ignorar a risota alemã do grupo loiro que a seguia nas escadas. Parecia que quanto mais depressa se queria despachar, menos habilidade sentia nas mãos para pegar nos objetos, deixando-os cair novamente, em vez de os conseguir colocar dentro da mochila, percebendo que por sua causa, ficavam entupidas as escadas, cheias de homens, mulheres e crianças impacientes. Depois de uns segundos embaraçosos, com a ajuda de um par de mãos encobertos pela sombra do corpo que as comandava, colocado diretamente contra o sol, lá conseguiu fechar atabalhoadamente a mochila e levantar-se rapidamente. O que viu deixou-a ainda mais aflita, ainda mais estática, ainda mais vermelha. O rapaz que observara durante a viagem era o mesmo que a ajudava, agora. Os gritos proferidos em alemão, vindos de trás, despertaram-na rapidamente daquela sensação de paralisia, enquanto, gentilmente, o jovem a puxava pelo braço, para deixar passar o grupo em fúria. Só naquele momento conseguia ver bem o seu rosto e ficou fascinada com a sua expressão doce e alegre. O rosto comprido, de cabelo curtinho, despenteado e despretensioso baixava-se para olhar nos seus olhos surpresos e a boca rosada e bem delineada, contraía-se num sorriso franco e branco, de dentes perfeitos. A barba rala, de dois dias, aloirada, completava o quadro calmo e algo etéreo, como se fosse de um boneco de cera. Sorriu também. Ainda presa pelo braço, com suavidade, ficou presa no momento, enquanto também o rapaz não era capaz de desviar o olhar. “Tu estás bem?” perguntou finalmente, enquanto lhe largava o pulso, quebrando o silêncio mágico que se instalara entre os dois, numa língua cantada que lhe pareceu italiano. “Sim”, respondia ela em português, juntamente com um aceno de cabeça para que o rapaz compreendesse. Sorriu outra vez abertamente e despediu-se, entrando num dos primeiros autocarros da fila que se formara para levar os passageiros, que se fechou logo de seguida. Enquanto o autocarro se afastava, ainda consegui vê-lo, tentando abrir espaço entre as outras pessoas para a rever, parada, ainda no mesmo local. Finalmente, ficaram fora do campo de visão um do outro. “Ah, Itália, Itália…” Suspirou, com o peito cheio de um ar que a comprimia e provocava cócegas, como se tivesse borboletinhas a bater as asas, dentro do seu estômago.


    E se, aos dezoito anos, tivesse deixado tudo para ir viajar? Quantos de nós já pensamos que devíamos ter ido, devíamos ter explorado o mundo, devíamos ter esquecido os conselhos dos mais velhos, a luta pelas médias, as questões filosóficas discutidas à mesa do almoço domingueiro, o namorico incessante e sofrido da adolescência? Agora, que estamos embrenhados num mundo de obrigações, contas e responsabilidades, poqrque nao fugirmos por uns instantes e embarcarmos na aventura desta jovem que personaliza o lado aventureiro, escondido no fundo de cada um de nós... Deixe-se levar com esta viajante e ... "boa viagem"...