Capítulo I
Quando o avião
levantou, finalmente, as rodas do tapete negro da pista do aeroporto, sentiu um
alívio quase carnal. Por alguns momentos, sentiu elevar-se também o peso que
carregara nos ombros durante os meses anteriores e quase sentiu suavizarem-se-lhe
as feições jovens, quase de menina, quase de mulher. Os dezoito anos
recentemente completos permitiam-lhe procurar finalmente a paz interior e
deixar os supostos adultos da sua família mais próxima gladiarem-se sozinhos.
Finalmente, via-se fora do circulo venenoso para o qual fora arrastada e onde
servia de arma de arremesso.
Instalada junto
à janela, não conseguia desviar o olhar das casas que iam ficando cada vez mais
pequenas, dos quadradinhos cultivados junto das pequenas propriedades onde se iam
deixando de ver as pessoas que se tornavam pontos, pontinhos em movimento até
deixarem de se ver, tapados pelas nuvens brancas e fofas em que apetecia tocar.
A imagem que via
refletida no vidro grosso da janelinha era agradável. Os cabelos castanhos encaracolavam,
mostrando reflexos de um tom de ruivo intenso, vindo da luz do sol morno que
penetrava forte, sem oposição, no avião cheio. A cara, emoldurada até aos
ombros, ligeiramente morena, mostrava uns olhos castanhos curiosos e atentos,
sempre bailando, feita borboleta tonta, de lugar em lugar, de cor em cor, de
vida em vida. A avó
costumava dizer que tinha também uma boca malandra, curtinha, redondinha,
sempre pronta a dar opinião, sempre vermelha como uma cereja madura, que fazia
um par perfeito com o nariz arrebitado, de quem acha que sabe tudo. Do alto dos
seus dezoito anos completos, na sua primeira viagem de avião, achou-se bonita,
livre, leve e fechou a cortininha, evitando o sol que começava a cegá-la. A
ordem para colocar os cintos tinha sido retirada através da luz apagada no
pequeno painel por cima da sua cabeça e entretinha-se a observar as hospedeiras
de bordo, impecáveis nos seus fatos azuis de mar, com uma risquinha vermelha e
nos seus cabelos muito puxados, empinados em cima da cabeça, em rabos de cavalo
perfeitos e solenes. Colocadas estrategicamente no corredor, explicavam,
através de gestos repetitivos, as instruções que se iam ouvindo relativamente à
segurança e saídas de emergência. Uma vez após outra, iam repetindo os gestos,
enquanto alteravam a língua que se ouvia em todo o avião. Ainda ficou atenta à
primeira explicação, em português, mas depois, já se ouvia inglês, os olhos
começaram a divagar pelos parceiros de viagem. Junto de si, no lugar colado ao
seu, uma mulher loira, muito pintada, dormia a sono solto de boca escancarada,
desde que se tinha sentado no lugar. Logo a seguir, um homem de fato castanho
formal, esforçava-se por ler o jornal, português, no espaço pequenino entre si
próprio e a cadeira da frente, ocupando metade do estreito corredor, onde agora
se fazia uma espécie de procissão para ir ao minúsculo compartimento que servia
de casa de banho, incomodando quem passava. Do outro lado do corredor, um casal
de meia-idade, mostrava aos ocupantes dos bancos seguintes as fotografias dos
vários netos que tinham ficado em casa, entre sorrisos e pequenitas lágrimas de
saudade antecipada. Mais à frente, dois gémeos, pequenos, sardentos, puxavam os
cabelos de uma adolescente gordinha que viajava sozinha e que, bastante
irritada, ponderava já pregar-lhes um par de estalos. Olhou por cima dos bancos
para o fundo do avião procurando alguém interessante com quem conversar mas só
viu um grupo de jovens, em grande algazarra a falar alemão. Definitivamente,
não tinha tido sorte. Não encontrava vivalma com quem partilhar umas palavras
nas quase duas horas que durava a viagem. Decidiu observar novamente pela
janela para se distrair e alegrou-se quando viu o mar, por baixo deles. Nunca
tinha sobrevoado o mar Mediterrâneo. Encostou a testa ao vidro, impaciente por
aterrar e fechou os olhos por uns momentos enquanto as hospedeiras iam e
vinham, com carrinhos repletos de bebidas, perguntando em várias línguas se
estavam interessados numa delas. Devia ter adormecido porque o que ouviu de
seguida foi a ordem para apertar os cintos, juntamente com o burburinho dos
passageiros a alisar as roupas e pegar nas revistas caídas durante os breves
sonos. Por instantes, abriu os olhos, mantendo-se encostada à janela e viu um
perfil masculino. Pensou que ainda estava a dormir e a sonhar e portanto piscou
várias vezes os olhos. Observou atentamente o vulto e pareceu-lhe ver um anjo,
tal a perfeição de traços que o definiam. O rapaz, também jovem, olhava pela
janela com ar sonhador, até que baixou a cabeça, voltando a concentrar-se num
livro que lia. A viagem passara rapidamente. Um novo mundo se aproximava. Assim
que o avião começou a pousar e os ouvidos a estalarem com a diminuição
repentina de pressão, abriu a cortina da janela e respirou profundamente. Finalmente,
chegara ao destino. Um novo mundo, pleno de possibilidades se abriria, em
poucos minutos, perante si.
O avião pousara
suavemente provocando um forte aplauso aos tripulantes e uma algazarra ainda
maior entre os jovens alemães, de faces corada, que se acumulavam nas traseiras
do avião. Os passageiros aproveitaram para se ir levantando e esticando as
pernas já doridas e sem forças, das horas em que tinham passado encolhidas e a
rapariga para tentar ver melhor o jovem que lhe tinha chamado a atenção. Infelizmente,
só conseguira perceber o quanto era alto porque ele mantinha-se virado para a
frente do avião, colocando a mochila preta, aos ombros, em silêncio. Decerto viajava
sozinho porque não o via conversar com ninguém e assim não conseguira descobrir
a nacionalidade, naquela miscelânea de pessoas. Virando o olhar para os seus
gestos, reparava nas mãos grandes, as unhas perfeitas, cortadas rente à pele.
Arrumava também o livro que se entretivera a ler, durante a viagem. Não era
português, agora tinha a certeza, ao tentar ler as palavras escritas na
sobrecapa. No entanto, não conseguira ler uma palavra, tão rápido que o livro
desapareceu do seu campo de visão.
Dada a
autorização para saírem do avião, Maria apressou-se a sair do lugar com a
intenção de retirar a sua própria mochila e seguir um pouco mais aquele rapaz
mistério. Mas, enquanto ele saía com facilidade do seu lugar e seguia pelo
corredor do avião, quase que empurrado pelos passageiros impacientes, que se
movimentavam como uma massa homogénea, ela esperava que a mulher ao seu lado
acabasse de retocar a horrível maquilhagem berrante para a deixar passar. No
momento em que se desviava com a pose de primeira-dama, já o rapaz tinha saído
do avião e se dirigia ao aeroporto. Retirou a mochila pequena do porta bagagens
localizado acima das cabeças dos passageiros e, colocando-a sobre um só ombro,
deixou-se levar pela onda que se mantinha em andamento, lento mas contínuo e ia
passando em frente do comandante e da tripulação que, sorridente, se mantinha
em pose de despedida, acenando. “Finalmente, finalmente cheguei…”, pensava
enquanto ia descendo as escadinhas no fim das quais se aglomeravam os
passageiros à espera do mini autocarro que os levaria à porta de desembarque e
saboreando o vento fresco e agradável daquela manhã de Julho, que lhe
despenteava os cabelos. No último degrau, parou por uns segundos, inspirando
fundo e… tropeçou, feita tonta, na alça que pendia da mochila pendurada,
estatelando-se ao comprido no chão italiano em que tocava pela primeira vez.
Que entrada ridícula, naquela viagem de iniciação, que inicio auspicioso
daquela aventura… Corada até às orelhas, esforçou-se por apanhar as bugigangas
que caíam da mochila entreaberta, tentando ignorar a risota alemã do grupo
loiro que a seguia nas escadas. Parecia que quanto mais depressa se queria
despachar, menos habilidade sentia nas mãos para pegar nos objetos, deixando-os
cair novamente, em vez de os conseguir colocar dentro da mochila, percebendo
que por sua causa, ficavam entupidas as escadas, cheias de homens, mulheres e
crianças impacientes. Depois de uns segundos embaraçosos, com a ajuda de um par
de mãos encobertos pela sombra do corpo que as comandava, colocado diretamente
contra o sol, lá conseguiu fechar atabalhoadamente a mochila e levantar-se
rapidamente. O que viu deixou-a ainda mais aflita, ainda mais estática, ainda
mais vermelha. O rapaz que observara durante a viagem era o mesmo que a
ajudava, agora. Os gritos proferidos em alemão, vindos de trás, despertaram-na
rapidamente daquela sensação de paralisia, enquanto, gentilmente, o jovem a
puxava pelo braço, para deixar passar o grupo em fúria. Só naquele momento
conseguia ver bem o seu rosto e ficou fascinada com a sua expressão doce e
alegre. O rosto comprido, de cabelo curtinho, despenteado e despretensioso
baixava-se para olhar nos seus olhos surpresos e a boca rosada e bem delineada,
contraía-se num sorriso franco e branco, de dentes perfeitos. A barba rala, de
dois dias, aloirada, completava o quadro calmo e algo etéreo, como se fosse de
um boneco de cera. Sorriu também. Ainda presa pelo braço, com suavidade, ficou
presa no momento, enquanto também o rapaz não era capaz de desviar o olhar. “Tu
estás bem?” perguntou finalmente, enquanto lhe largava o pulso, quebrando o
silêncio mágico que se instalara entre os dois, numa língua cantada que lhe
pareceu italiano. “Sim”, respondia ela em português, juntamente com um aceno de
cabeça para que o rapaz compreendesse. Sorriu outra vez abertamente e
despediu-se, entrando num dos primeiros autocarros da fila que se formara para
levar os passageiros, que se fechou logo de seguida. Enquanto o autocarro se
afastava, ainda consegui vê-lo, tentando abrir espaço entre as outras pessoas
para a rever, parada, ainda no mesmo local. Finalmente, ficaram fora do campo
de visão um do outro. “Ah, Itália, Itália…” Suspirou, com o peito cheio de um
ar que a comprimia e provocava cócegas, como se tivesse borboletinhas a bater
as asas, dentro do seu estômago.