sexta-feira, 29 de junho de 2012

Capítulo VII

Deitada de costas sobre a coberta clara, alinhada, já esticada, ia ouvindo a animação que reinava no andar de baixo. Bancos pesados eram arrastados sem pudor, vozes jovens, alegres, frescas, melodiosas, conversavam num clima de grande familiaridade. Alguém punha a mesa, fazendo chocar os pratos uns nos outros, atirando os talheres com desenvoltura que batiam nos pratos, tilintando os copos, num chinfrim caseiro e apetecível. Na sua casa branca, limpa, imaculada, decorada cirurgicamente, nunca fazia barulho. Evitava o bater das chaves quando chegava das aulas para não perturbar o sossego da mãe, as atividades da mãe, as enxaquecas da mãe. O som da televisão estava sempre no mínimo, para não incomodar o pai, os telefonemas do pai, o trabalho do pai, o cansaço do pai. Virou-se, colocando-se de lado, a cabeça pousada na almofada rígida, enquanto uma lagrimazinha escorreu pelo seu olho, molhando a cana o nariz, precipitando-se na sua ponta arrebitada. “Esquece que tens uma filha.” Tinha disparado à mãe, à mãe que a gerara e a criara, à mãe que a olhava, de cabelos em desalinho e olhos muito abertos, subitamente despertos, subitamente vivos, no momento em que saia pela porta do apartamento. “Deixa-me em paz, vou viver a minha vida.” Sussurrou ao pai, à porta daquele restaurante badalado para onde o seguira, enquanto sentia os ombros nus da sua jovem acompanhante, virados na sua direção, enquanto sentia o seu olhar pintado e imberbe, pousado nos seus gestos, na sua roupa. Sentia o seu desdém, a sua vontade de se libertar dela, o seu rosto deformado, preso entre madeixas oxigenadas, prenuncio da sua sensualidade avassaladora. Maria lembrava-se do horror que sentira ao imaginar o pai com outra mulher, ao imaginar o pai com uma mulher. O asco que tinha à figura que bebericava golinhos estúpidos de uma marca de vinho conhecida, enquanto o pai, o seu pai, se levantava da mesa, na tentativa de lhe dar explicações sobre o que ela vira ou deixara de ver. Tinha sido aquele momento, aquela visão venusiana, entre um golinho de néctar divino e outro golinho do fel que emanava por cada poro, que dava o golpe final na pseudo normalidade em que Maria vivia desde que se conhecia que a fizera decidir. Iria viver a sua vida, o que quer que isso significasse. Ia viajar!

                                                                ***

Desceu as escadas devagarinho enquanto sentia o aroma cada vez mais forte daquela refeição que a aguardava. A cozinha parecia agora muito mais pequena, cheia de estudantes, caótica. Alguns conversavam, outros acabavam de arranjar a mesa, uma delas, muito ruiva e sardenta, junto a Francesca, mexia nas panelas com à vontade, manuseando energicamente a sua colher de pau, colhendo aqui e ali pequenas indicações da dona do refúgio. Procurou Li com o olhar até que a encontrou, sentada num pequeno banco redondo, de cotovelos pousados nos joelhos e face colada às mãos, observando dois jovens que jogavam xadrez, concentradíssimos, numa ponta da enorme mesa. Aproximou-se sorrateiramente, tentando passar despercebida mas todos davam pela sua presença, à medida que esta atravessava a cozinha. Sentiu a faces ruborizarem. Toda a sua vida desejara que reparassem nela, mas, por um motivo ou por outro, tinha sempre a impressão de que ninguém a via. Mas, naquele lugar longínquo, onde ninguém a conhecia, parecia que todos tinham a invulgar, a requintada capacidade, o dom de a verem. À esquerda e à direita iam surgindo acenos, sorrisos, gestos de boas vindas. Maria era olhada nos olhos com simpatia e delicadeza. No entanto, não sabia se estava contente ou triste com todas aquelas manifestações de carinho e acolhimento. Pareciam-lhe tão verdadeiras quanto belas. Tão simples, sem qualquer custo e por isso tão importantes. Encostou-se junto a Li, como se procurasse uma aliada, ignorando o sentimento impreciso que esta tinha provocado, pouco tempo antes, bem lá dentro do seu imaturo coração, ainda povoado por fadas e fantasmas, numa luta entre a magia e o algodão doce da infância e as agruras e amarguras da vida adulta, até então, tão apetecível. “Olá, outra vez.” Sorriu um sorriso doce, tão doce. “Quando eles pararem o jogo vou apresentar-tos.” Começou, referindo-se aos dois silenciosos jogadores. “São os meus melhores amigos aqui.” Maria esforçou-se por encontrar um tema de conversa que não as levasse para debates filosóficos. Tinha as suas próprias convicções mas ainda não tinha feito, mentalmente, a lista de argumentos necessária para os validar. Sentia-se desarmada. “Eles jogam xadrez, que giro.” “Nem sabes o quanto é bom eles terem descoberto este jogo. Eles são insuportáveis. Estão sempre a discutir… Ninguém os cala.” Mas estão a jogar juntos…” “Pois, é uma longa história. Na verdade eles adoram-se mas nunca concordam. “ Riu-se com vontade. “Pelo que eu sei chegaram ao refúgio no mesmo dia. O Sam veio de Nova York e o Anthony veio de Londres. Começaram nesse mesmo dia a discutir… e nunca mais pararam… Eu acho que agora já é hábito.” Maia riu-se também. Gostava o à vontade naquela casa. As pessoas conversavam, cozinhavam, jogavam… não sentia o silêncio frio que penetrava ela frechas de todas as janelas estilo art nouveau do seu apartamento junto ao mar. Aquelas correntes geladas que feriam, cortavam, massacravam a sua personalidade moldável. Ali tudo era colorido. A toalha da mesa, amarela, cor do sol, dos indecisos e dos girassóis. Calcando-a, pratos, diferentes entre si, parecendo fazer parte de uma qualquer pintura de surrealista. Os habitantes daquele refúgio, por si só, poderiam ser destacados para integrar uma nova arca de Noé, pela diversidade de raças, etnias, línguas, costumes… nacionalidades. Varias barreiras sócias… nenhuma barreira humana. Sentia-se no início dos tempos, onde eram todos irmãos. A ilusão durou pouco. Mal se apercebeu da sua chegada, Francesca veio na sua direcção, sufocando-a com mais um dos seus apertados abraço, agora juntando também Li e pedindo-lhe para tomar conta da nova hóspede, enquanto a fazia sentar-se no banco corrido e a servia, num enorme prato, de pilhas de uma comida perfumada e deliciosa. Lasanha. A carne corada pelo tomate escorria pelas placas de massa tenra, provocando  uma quente cascata no seu prato. Francesca,  cortou com os dedos capazes uma folha perfumada de um ramo, atado com um pedaço de ráfia e colocou por cima da lasanha fumegante desejando-lhe bom apetite. Repetiu o gesto vezes se conta, até que todos estivessem servidos, enquanto os seus refugiados distribuíam agua gaseificada pelo copos dispersos, numa confusão de bolhinhas e palavras. Durante alguns instantes, Maria isolou-se do resto do grupo, interiormente, enquanto levava a boca o garfo cheio daquela mistura. Sentiu primeiro o sabor ligeiramente ácido do tomate e logo depois, numa fração de segundos um leve sabor doce, enquanto a massa se ia desfazendo na sua boca. A sensação era agradável, deliciosa. Conjugava em pleno com o ambiente que via o seu redor. O rapaz que estava ao seu lado, vestido de camisa branca, apertada ate ao colarinho, mesmo naquela hora de calor abrasador, pediu-lhe gentilmente, por gestos, o pão. Assim que o passou para as suas mãos, observou-o partir a crosta ligeiramente bronzeada e estaladiça, e enchumbando o miolo de algodão doce na carne suculenta, tentou absorver o molho e colocou-o na boca, deliciado, deixando escorrer um ligeiro fio de molho pelo canto da boca, satisfeito. O rapaz, Joseph de seu nome, como veio mais tarde a descobrir, soltou um suspiro de satisfação prazerosa. Maria esqueceu todas as convenções e imitou-o saboreando aquela refeição de forma única. “Maria, compõe-te. Não quero que a vovó te veja com esses modos.” Maria de vestido branco, fita verde a marcar a cintura e sapatos de verniz. “Maria, para de mexer a cabeça. Vais parecer um espantalho.” Não tinha mais de cinco anos. Ficava quieta enquanto a mãe lhe puxava e puxava e puxava o cabelo, até que ficasse bem apertadinho atrás. “Quando a vovó chegar, vais logo cumprimentá-la. E vê se comes de boca fechada, ouviste?” Maria olhava pela janela. “E posso ir lá para fora mãe?” “Se podes ir lá para fora?” A voz elevava-se.” Se podes ir lá para fora? Eu estou aqui a arranjar-te para a tua avó não pensar que somos uns pelintras e tu queres ir lá para fora?” A voz da mãe atingia o expoente máximo de altura que as suas cordas vocais permitiam em curtos segundos. Maria calava-se e esperava pela vovó. Solene. Quieta. De vestido branco, muito branco. Tão branco. Lá fora a tarde ia passando, enquanto os outros meninos brincavam e a mãe ia convencendo a vovó de que não tinha sido uma péssima escolha do marido. “Veja a Maria, minha sogra. Como está tão bem educada. E como cresceu.” Eram estas memórias que surgiam no pensamento de Maria, enquanto molhava o pão no molho da lasanha da Francesca, com os dedos, sujando os dedos e a boca, engordurando os dedos e a boca e o queixo depois de um abraço da Francesca e de ter visto os afrescos de Miguel Ângelo. Encheu mais uma vez a boca até não poder mais e engoliu estas memórias tão distantes. Nem se lembrava que se lembrava delas. Tão longínquas que eram. De uma Maria que não era a Maria que ela era. Pelo menos, que não eram da Maria que ela queria ser. Dali em diante usaria sempre o cabelo solto. Riu-se de si para si. Que grande revolução iniciara entre duas garfadas de lasanha. Rapidamente limpou as mãos, já também avermelhadas e a boca ao guardanapo de flores quando ouviu um som conhecido. A mota de Pietro… Levantou-se e correu para a porta, ignorando os olhares dos companheiros de refúgio, sacudiu rapidamente as fitas para sair e ser absorvida pelo bafo quente daquela rua italiana…

3 comentários:

  1. Muito Bom! Maria ganha densidade enquanto personagem principal e a narrativa desenvolve-se com a naturalidade dessa Maria que todos queremos conhecer!
    Keep it up!
    Um beijinho

    ResponderEliminar
  2. Lindo,acho que para já este é o meu capitulo preferido.
    A primeira parte do capitulo está fantastica e esta lasanha deve mesmo ser divinal...lol

    Espero por mais.

    beijinhos

    ResponderEliminar
  3. Hum... Lasagna... Consigo mesmo sabore la

    ResponderEliminar