segunda-feira, 11 de junho de 2012


Capítulo I

Quando o avião levantou, finalmente, as rodas do tapete negro da pista do aeroporto, sentiu um alívio quase carnal. Por alguns momentos, sentiu elevar-se também o peso que carregara nos ombros durante os meses anteriores e quase sentiu suavizarem-se-lhe as feições jovens, quase de menina, quase de mulher. Os dezoito anos recentemente completos permitiam-lhe procurar finalmente a paz interior e deixar os supostos adultos da sua família mais próxima gladiarem-se sozinhos. Finalmente, via-se fora do circulo venenoso para o qual fora arrastada e onde servia de arma de arremesso.
Instalada junto à janela, não conseguia desviar o olhar das casas que iam ficando cada vez mais pequenas, dos quadradinhos cultivados junto das pequenas propriedades onde se iam deixando de ver as pessoas que se tornavam pontos, pontinhos em movimento até deixarem de se ver, tapados pelas nuvens brancas e fofas em que apetecia tocar.
A imagem que via refletida no vidro grosso da janelinha era agradável. Os cabelos castanhos encaracolavam, mostrando reflexos de um tom de ruivo intenso, vindo da luz do sol morno que penetrava forte, sem oposição, no avião cheio. A cara, emoldurada até aos ombros, ligeiramente morena, mostrava uns olhos castanhos curiosos e atentos, sempre bailando, feita borboleta tonta, de lugar em lugar, de cor em cor, de vida em vida. A avó costumava dizer que tinha também uma boca malandra, curtinha, redondinha, sempre pronta a dar opinião, sempre vermelha como uma cereja madura, que fazia um par perfeito com o nariz arrebitado, de quem acha que sabe tudo. Do alto dos seus dezoito anos completos, na sua primeira viagem de avião, achou-se bonita, livre, leve e fechou a cortininha, evitando o sol que começava a cegá-la. A ordem para colocar os cintos tinha sido retirada através da luz apagada no pequeno painel por cima da sua cabeça e entretinha-se a observar as hospedeiras de bordo, impecáveis nos seus fatos azuis de mar, com uma risquinha vermelha e nos seus cabelos muito puxados, empinados em cima da cabeça, em rabos de cavalo perfeitos e solenes. Colocadas estrategicamente no corredor, explicavam, através de gestos repetitivos, as instruções que se iam ouvindo relativamente à segurança e saídas de emergência. Uma vez após outra, iam repetindo os gestos, enquanto alteravam a língua que se ouvia em todo o avião. Ainda ficou atenta à primeira explicação, em português, mas depois, já se ouvia inglês, os olhos começaram a divagar pelos parceiros de viagem. Junto de si, no lugar colado ao seu, uma mulher loira, muito pintada, dormia a sono solto de boca escancarada, desde que se tinha sentado no lugar. Logo a seguir, um homem de fato castanho formal, esforçava-se por ler o jornal, português, no espaço pequenino entre si próprio e a cadeira da frente, ocupando metade do estreito corredor, onde agora se fazia uma espécie de procissão para ir ao minúsculo compartimento que servia de casa de banho, incomodando quem passava. Do outro lado do corredor, um casal de meia-idade, mostrava aos ocupantes dos bancos seguintes as fotografias dos vários netos que tinham ficado em casa, entre sorrisos e pequenitas lágrimas de saudade antecipada. Mais à frente, dois gémeos, pequenos, sardentos, puxavam os cabelos de uma adolescente gordinha que viajava sozinha e que, bastante irritada, ponderava já pregar-lhes um par de estalos. Olhou por cima dos bancos para o fundo do avião procurando alguém interessante com quem conversar mas só viu um grupo de jovens, em grande algazarra a falar alemão. Definitivamente, não tinha tido sorte. Não encontrava vivalma com quem partilhar umas palavras nas quase duas horas que durava a viagem. Decidiu observar novamente pela janela para se distrair e alegrou-se quando viu o mar, por baixo deles. Nunca tinha sobrevoado o mar Mediterrâneo. Encostou a testa ao vidro, impaciente por aterrar e fechou os olhos por uns momentos enquanto as hospedeiras iam e vinham, com carrinhos repletos de bebidas, perguntando em várias línguas se estavam interessados numa delas. Devia ter adormecido porque o que ouviu de seguida foi a ordem para apertar os cintos, juntamente com o burburinho dos passageiros a alisar as roupas e pegar nas revistas caídas durante os breves sonos. Por instantes, abriu os olhos, mantendo-se encostada à janela e viu um perfil masculino. Pensou que ainda estava a dormir e a sonhar e portanto piscou várias vezes os olhos. Observou atentamente o vulto e pareceu-lhe ver um anjo, tal a perfeição de traços que o definiam. O rapaz, também jovem, olhava pela janela com ar sonhador, até que baixou a cabeça, voltando a concentrar-se num livro que lia. A viagem passara rapidamente. Um novo mundo se aproximava. Assim que o avião começou a pousar e os ouvidos a estalarem com a diminuição repentina de pressão, abriu a cortina da janela e respirou profundamente. Finalmente, chegara ao destino. Um novo mundo, pleno de possibilidades se abriria, em poucos minutos, perante si.
O avião pousara suavemente provocando um forte aplauso aos tripulantes e uma algazarra ainda maior entre os jovens alemães, de faces corada, que se acumulavam nas traseiras do avião. Os passageiros aproveitaram para se ir levantando e esticando as pernas já doridas e sem forças, das horas em que tinham passado encolhidas e a rapariga para tentar ver melhor o jovem que lhe tinha chamado a atenção. Infelizmente, só conseguira perceber o quanto era alto porque ele mantinha-se virado para a frente do avião, colocando a mochila preta, aos ombros, em silêncio. Decerto viajava sozinho porque não o via conversar com ninguém e assim não conseguira descobrir a nacionalidade, naquela miscelânea de pessoas. Virando o olhar para os seus gestos, reparava nas mãos grandes, as unhas perfeitas, cortadas rente à pele. Arrumava também o livro que se entretivera a ler, durante a viagem. Não era português, agora tinha a certeza, ao tentar ler as palavras escritas na sobrecapa. No entanto, não conseguira ler uma palavra, tão rápido que o livro desapareceu do seu campo de visão.
Dada a autorização para saírem do avião, Maria apressou-se a sair do lugar com a intenção de retirar a sua própria mochila e seguir um pouco mais aquele rapaz mistério. Mas, enquanto ele saía com facilidade do seu lugar e seguia pelo corredor do avião, quase que empurrado pelos passageiros impacientes, que se movimentavam como uma massa homogénea, ela esperava que a mulher ao seu lado acabasse de retocar a horrível maquilhagem berrante para a deixar passar. No momento em que se desviava com a pose de primeira-dama, já o rapaz tinha saído do avião e se dirigia ao aeroporto. Retirou a mochila pequena do porta bagagens localizado acima das cabeças dos passageiros e, colocando-a sobre um só ombro, deixou-se levar pela onda que se mantinha em andamento, lento mas contínuo e ia passando em frente do comandante e da tripulação que, sorridente, se mantinha em pose de despedida, acenando. “Finalmente, finalmente cheguei…”, pensava enquanto ia descendo as escadinhas no fim das quais se aglomeravam os passageiros à espera do mini autocarro que os levaria à porta de desembarque e saboreando o vento fresco e agradável daquela manhã de Julho, que lhe despenteava os cabelos. No último degrau, parou por uns segundos, inspirando fundo e… tropeçou, feita tonta, na alça que pendia da mochila pendurada, estatelando-se ao comprido no chão italiano em que tocava pela primeira vez. Que entrada ridícula, naquela viagem de iniciação, que inicio auspicioso daquela aventura… Corada até às orelhas, esforçou-se por apanhar as bugigangas que caíam da mochila entreaberta, tentando ignorar a risota alemã do grupo loiro que a seguia nas escadas. Parecia que quanto mais depressa se queria despachar, menos habilidade sentia nas mãos para pegar nos objetos, deixando-os cair novamente, em vez de os conseguir colocar dentro da mochila, percebendo que por sua causa, ficavam entupidas as escadas, cheias de homens, mulheres e crianças impacientes. Depois de uns segundos embaraçosos, com a ajuda de um par de mãos encobertos pela sombra do corpo que as comandava, colocado diretamente contra o sol, lá conseguiu fechar atabalhoadamente a mochila e levantar-se rapidamente. O que viu deixou-a ainda mais aflita, ainda mais estática, ainda mais vermelha. O rapaz que observara durante a viagem era o mesmo que a ajudava, agora. Os gritos proferidos em alemão, vindos de trás, despertaram-na rapidamente daquela sensação de paralisia, enquanto, gentilmente, o jovem a puxava pelo braço, para deixar passar o grupo em fúria. Só naquele momento conseguia ver bem o seu rosto e ficou fascinada com a sua expressão doce e alegre. O rosto comprido, de cabelo curtinho, despenteado e despretensioso baixava-se para olhar nos seus olhos surpresos e a boca rosada e bem delineada, contraía-se num sorriso franco e branco, de dentes perfeitos. A barba rala, de dois dias, aloirada, completava o quadro calmo e algo etéreo, como se fosse de um boneco de cera. Sorriu também. Ainda presa pelo braço, com suavidade, ficou presa no momento, enquanto também o rapaz não era capaz de desviar o olhar. “Tu estás bem?” perguntou finalmente, enquanto lhe largava o pulso, quebrando o silêncio mágico que se instalara entre os dois, numa língua cantada que lhe pareceu italiano. “Sim”, respondia ela em português, juntamente com um aceno de cabeça para que o rapaz compreendesse. Sorriu outra vez abertamente e despediu-se, entrando num dos primeiros autocarros da fila que se formara para levar os passageiros, que se fechou logo de seguida. Enquanto o autocarro se afastava, ainda consegui vê-lo, tentando abrir espaço entre as outras pessoas para a rever, parada, ainda no mesmo local. Finalmente, ficaram fora do campo de visão um do outro. “Ah, Itália, Itália…” Suspirou, com o peito cheio de um ar que a comprimia e provocava cócegas, como se tivesse borboletinhas a bater as asas, dentro do seu estômago.


4 comentários:

  1. simplesmente lindo....Consegui entrar na viagem juntamente com a Maria,era como se estivesse naquele mesmo avião e estivesse a fazer a mesma viagem....

    Colei mesmo....

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    1. Ainda bem que gostaste... Então vai seguindo porque a história está apenas a começar... Muitas surpresas vêm por aí... Boa viagem;)

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  2. Adorei!!!! Fiquei em pulgas para ler, ler e não para de ler. Ainda bem que não estava nem com agulhas, nem entre tachos.....teria sido um desastre!
    Um beijinho e Parabéns
    Vou mesmo aqui atrás de ti!

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    1. Pois então prepara-te porque o melhor ainda está para vir... Boa viagem ;)

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