quarta-feira, 13 de junho de 2012


Capítulo III


O primeiro impulso que teve foi chorar, pegar nos trocos que tinha recebido na pastelaria e telefonar de um qualquer telefone público a alguém. Alguém que não fosse o pai nem a mãe. No entanto, segurou as lágrimas de raiva e decidiu emudecer a dor por ter perdido o telemóvel, aquele telemóvel que tinha lutado tanto para ter, aquele objeto que tinha despoletado a sua fúria, quando ainda estava em casa, com os pais.
Agora era uma adulta, ia comportar-se com tal e iria provar a todos que conseguia desenrascar-se sem ajuda. Afinal já tinha dezoito anos, era a única responsável por si própria e não podia falhar. Tinha acusado os adultos da sua família de ser irresponsáveis e não ia dar-lhes o gosto de a verem falhar.
Pensou no que deveria fazer e veio-lhe à ideia a cara redondinha e branquinha da empregada da pastelaria. Era isso! Eram praticamente da mesma idade e ela parecia simpática, alem disso, como trabalhava ali, com certeza conhecia a zona.
Voltou à rua principal, onde o barulho dos carros e das motas continuava alto. Entrou novamente na pastelaria, procurando ansiosamente o rosto da jovem que estava naquele momento a repor os bolos na vitrina apetitosa. Pensou no que deveria dizer-lhe para que esta ajudasse mas não foi preciso. Ao ver os seus olhos vermelhos, foi imediatamente ter com ela.
Em inglês, a conversa começava a ser mais fluida. Mentalmente, agradecia ao seu Deus tê-la mantido atenta mas aulas daquela disciplina. O facto de a professora ser uma morena bem disposta, sempre pronta a conversar acerca das suas experiências em terras do tio Sam, também contribuiu. Sim, prestara atenção e agora conseguia comunicar, conseguia desenrascar-se, que era o que precisava naquele momento. Mostrou-lhe o papelinho amachucado e a rapariga de avental, muita séria, semicerrou um pouco os olhinhos curiosos para logo de seguida acenar que sim, sabia onde ficava e sim, ia levá-la lá. Agora restava-lhe esperar que a pastelaria fechasse, a rapariga fizesse as contas e arrumasse tudo, o que ainda ia demorar. Resolveu ficar à janela e observar o movimento. Como era imponente aquela cidade. Agora sabia porque os exploradores do século XVI chamavam Novo Mundo aos locais onde chegavam. Parecia que o próprio ar que respiravam era diferente, que as pessoas eram feitas de uma outra qualquer matéria. Aquele era o seu novo mundo.

Anoitecia. À medida que a quantidade de luz ia diminuindo nas ruas, o número de pessoas começava também a diminuir, enquanto o trânsito, nas artérias principais da grande cidade, continuava intenso e algo frenético. Na azáfama do final do dia, centenas de pessoas se apressavam para chegar a casa, depois do dia de trabalho e centenas de outros, turistas, se apressavam também, na espetativa de verem os últimos monumentos, antes de se recolherem para saborear alguma iguaria típica, num dos inúmeros restaurantes franchisados, caçadores de turistas esfomeados e desgastados pelas inúmeras horas de passeios a pé pela cidade eterna. As duas raparigas meteram por uma ruela transversal à principal, enquanto conversavam em inglês, já com um certo à-vontade. Na verdade, ainda que Maria não tivesse grande vontade de falar, a sua guia, Caterina, era aquilo que se podia chamar uma gralha. Falava sem parar, num inglês muito modificado pela acentuada musicalidade presente na língua da rapariga italiana, mas bastante perceptível, pelo menos para qualquer estrangeiro porque, e poderia jurar, certamente não existiria um único inglês de Inglaterra que percebesse uma palavra daquela ladainha. Maria pensou que tinha que aprender a falar a língua autóctone, isto se queria arranjar um emprego rapidamente. Bem, na verdade não tinha grande opção porque o dinheiro que tinha consigo apenas chegava para pagar o adiantado na pensão e pouco mais. Tinha mesmo que pensar em ganhar uns trocos mas, para já, o que precisava era de um bom banho e uma cama quentinha para retemperar forças. “And you? Do you have any brothers or sisters?[1]” Apercebeu-se de que deixara de ouvir a sua companheira durante uns bons minutos, enquanto continuavam a andar a um bom ritmo, cada vez mais distantes do centro. “No, I don’t. I’m na only child.[2]” O assunto não era bem-vindo. Tinha viajado para aquele país com o intuito de esquecer que tinha família. O que menos queria era ouvir perguntas sobre ela. Caterina parou à entrada para uma pequena viela, olhando uma vez mais para o papel que Maria lhe tinha passado para as mãos, como que a confirmar que estavam na rua certa. “We’re here![3]” A rapariga apontou para uma pequena tabuleta, a cerca de dez metros, onde estava escrito o nome da pequena pensão “Il rifugio del viaggiatore[4]” em letras pequenas e desenhadas, num estilo ligeiramente medieval. A estradinha do beco era feita de pedras pequeninas, ladeada por plantas verdes e viçosas, colocadas em vasos colados à parede, como que a combinar com a enorme trepadeira que rodeava a porta velha, do lado esquerdo da ruinha sem saída, ainda com batente e a janela que a acompanhava. As paredes eram algo velhas, com a tinta a descascar e o escuro da noite que se tinha posto totalmente, provocaram-lhe um pequeno arrepio, enquanto Caterina fazia pender o batente, com estrondo, na porta fechada.









[1] “E tu? Tens irmãos?”
[2] “Não. Sou filha única.”
[3] “Chegámos.”
[4] “O refúgio do viajante”

2 comentários:

  1. Mais um capitulo e mais curiosidade... lindo.

    ResponderEliminar
  2. Acho que este refugio merece descrição pormenorizada. O ocre das paredes manchadas a penumbra das portadas de Carvalho escuro, o rádio antigo e a musicalidade das goticulas da pia enferrujada, não achas?
    Beijo

    ResponderEliminar