terça-feira, 19 de junho de 2012

Capitulo VI

A porta da pensão estava aberta. Maria segurou com as duas mãos as cortinas de fitas e esgueirou-se silenciosamente, ainda de faces rosadas de emoção, depois do passeio com Pietro. Começava a acalmar-se. Sentia o estômago sossegar, depois da intensa agitação que o tinha revolvido desde tão cedo, naquela manhã. Sentiu um odor agradável, de molho de tomate e massa fresca e viu uma outra presença, sentada no banco, escrevendo num bloco de folhas pautadas, com uma lapiseira garrida. A rapariga rapidamente levantou a cabeça, prendendo a cabeleira comprida e lustrosa, muito preta, num rabo-de-cavalo extremamente liso. A face abriu-se num sorriso, mostrando os dentes pequenos mas alinhados e arqueando levemente as sobrancelhas, mostrou uns olhinhos rasgados, de íris muito pretas e pequeninas, orientais e intensos. “Olá.” Dirigiu-se imediatamente à recém-chegada, enfunando vigorosamente os papéis desorganizados numa pasta de cabedal clarinho e levantando-se cheia de energia. “És a Maria, não és?” A panela de alumínio, ao lume, começava a fumegar, deixando transbordar pequenas quantidades de água, como que saindo da boca de um minúsculo vulcão. Enquanto Maria respondia baixinho umas palavrinhas quase impercetíveis de anuência, a rapariga baixou o lume, rindo-se com desenvoltura. Voltou-se novamente para Maria: “Se vens morar connosco, aviso-te já que nesta casa só há malucos. Mas não te preocupes porque é tudo boa gente.” Riram-se as duas. “E tu és…” A rapariga parecia ter mais ou menos a sua idade. Achou-a muito bonita, de pele ligeiramente morena e perfeita, muito lisa. A boca pequenina abriu-se e começou a explicação. Devia estar farta de se apresentar porque as palavras lhe saíram quase mecanicamente. “O meu nome é Li e sou macaense. Estou cá com uma bolsa a fazer o doutoramento.” Maria ficou impressionada. “Doutoramento? Quantos anos tens?” Mostrou-se surpreendida. “Vinte e seis primaveras, mas sei que não pareço ter mais de quinze…” Era bem disposta esta macaense. Bem diferente do pressuposto da mulher oriental, submissa, paciente e calada. “Já me contaram tudo sobre ti. Bem, tudo não… Sei que vens de Portugal e que foste assaltada…” Maria mostrou-se algo surpreendida. “Não te admires… Os italianos são assim. Pelo menos nesta casa. Aqui não há segredos!” “Já estou a ver que sim…” A dona da casa entrou pela cozinha dentro, de avental aos quadradinhos, rodeando uma das dobras preeminentes do seu largo abdómen. “Oh, minha querida. Estás aqui? Passaste bem a noite? Precisas de alguma coisa? Daqui a pouco vamos almoçar…” Abraçava-a fortemente enquanto Maria olhava para a companheira de casa pelo canto dos olho, suplicando ajuda para sair daquele abraço gordo e apertado, a cheirar a alfazema. “A Maria pediu-me ajuda para arrumar as coisas antes do almoço!” Sentiu o abraço afrouxar tão depressa como a tinha enlaçado e a dona da casa virar-se para os tachos e panelas que assobiavam freneticamente. “Vão, vão… Se precisarem de toalhas, têm na despensa… Mas não demorem porque o almoço está quase pronto.” Ainda a mulher não tinha acabado de falar, já elas se esgueiravam pelo corredor, sufocando risinhos. Maria ainda estava algo ofegante pela sensação claustrofóbica que o gesto lhe causara. Suspirou, assim que fecharam a porta do seu quarto. “Ainda bem que me salvaste. Estava a ver que sufocava!” Li sentou-se na cama desfeita. “A Francesca é muito afetuosa. Mas vais ver que te habituas. Não tarde nada estás tu a pedir-lhe um abraço.” Riram-se. Maria nem sequer se lembrava do nome da dona da pensão. Sentia a cabeça a flutuar. “Ainda não arrumei nada. Ontem estava tão cansada. Nem olhei para o quarto.” Li, entretanto encostada às almofadas, endireitou-se para ajudar. “Então vamos lá. O que precisas que faça?” Maria começava a amontoar algumas peças que ia retirando da mochila desportiva. “Já estás cá há muito tempo?” “Vai fazer em Setembro um ano.” Maria virou-se de costas para a colega que desdobrava as calças de ganga da portuguesa e as pendurava em cabides, abrindo uma das gavetas da cómoda antiga e depois de um curto silêncio, perguntou, pensando nos olhos profundos de Pietro e no calor que emanava do seu corpo, enquanto circulavam abraçados pelas ruelas de Roma. “Acreditas em amor à primeira vista?” Fechou a gaveta e voltou novamente o olhar para a companheira, abrindo uma bolsinha e dispondo os colares por cima da mesa-de-cabeceira, tentando desembaraçar os fios coloridos, com que se adornava. Para embaraços, já lhe bastavam os que sentia, lá no fundo da alma. “Claro que sim!” Afirmou convictamente. “É o único tipo de amor que conheço.” Continuaram em silêncio durante uns minutos, cada uma embrenhada nos seus pensamentos. Rapidamente arrumaram os poucos haveres de Maria. “Só trouxeste isto?” “Não tive muito tempo para fazer as malas.” Era em parte verdade. “E o que vieste fazer para Roma?” Maria adoraria saber responder àquela pergunta. Intimamente, compreendia ter fugido do mundinho em que vivia. Um mundo frio, onde não existiam aqueles abraços sufocantes, onde ninguém a via, ninguém a ouvia e ninguém a percebia. Fugia de uma mãe cuja preocupação era subir as escadinhas íngremes do sucesso profissional. De uma mãe que aproveitava as reuniões escolares para vender as apólices de seguros que lhe permitam alcançar os infindáveis prémios de vendas de que tanto se orgulhava, até durante as suas festas de aniversário. Fugia de um pai ausente, perito em reuniões fora de horas, esquecido dos seus projetos de ciências, das suas atuações de ballet e inconsciente do seu crescimento. Fugia do casamento falhado dos pais que lhe tolhia os movimentos, das suas faltas de respeito, das suas palavras ácidas e corrosivas que lhe deformavam a personalidade doce. Fugia do leque apertado de escolhas de que dispunha, fugia de um futuro certo numa profissão castradora que não a enriqueceria onde ela pretendia, no coração. Fugia até da pessoa que se estava a tornar, naquela sociedade enjoativa para onde a empurravam. “Vim… vim viver a minha vida.” Respondeu ao leve com uma falsa segurança. “Ah! E isso é o quê, viver a vida?” Perguntou Li mostrando, com uma pequenina dose de ironia, ter realmente vivido mais anos do que Maria. “Viver a vida é o quê? Pareces a minha avó. Sei lá, é fazer o que eu quiser.” Levantaram-se e começaram a fazer a cama, esticando bem os lençóis. “Se isso é viver a vida então estamos todos mortos. Ninguém faz só aquilo que quer. Se calhar é melhor pensares nisso antes que estejas tão ocupada a viver a vida que nem percebas que ela está a passar.” Maria calou-se. Achava despropositado uma desconhecida fazer considerações sobre a sua vida. O que poderia ela saber? Não tinha vivido o que ela vivera. Não sabia o que ela sofrera. “Obrigado por me teres ajudado.” Li percebia bem que tinha causado algum incómodo na nova habitante do refúgio. Não era a sua intenção. “Se precisares de alguma coisa, estou no quarto ao lado. Podes bater à hora que quiseres.” Maria agradeceu novamente e Li saiu do quarto, fechando a porta devagarinho. Maria deitou-se de costas, pensativa. “O que raio vou fazer com a minha vida?”

6 comentários:

  1. Adorei....como sempre:)Grande dilema tem a "nossa" Maria. O que será que vai ela fazer da vida?É esperar que a escritora nos diga...lol

    ResponderEliminar
  2. Estou com 29 primaveras e eu propria me pergunto.... O que e cover a Vida? Axo k muitas vezes estamos tao ocupados a pensar no k keremos, como vamos conseguir os nossos objectivos k nos eskecemos de viver os momentous certos... E a Vida vai passando!!

    ResponderEliminar
  3. Hoje acordei Maria. Queria entrar no avião e partir. Buscar uma vida de intensidade e aventura. Aguardo ansiosamente pelo próximo dia. Será que serei Maria?
    Um beijinho
    Filipa :)

    ResponderEliminar
  4. Então!!! Esperamos ansiosamente mais um capitulo!

    ResponderEliminar